Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf

Rivalidade entre EUA e China dará forma ao século 21 

A China é rival dos Estados Unidos em duas dimensões: poder e ideologia

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A China é uma superpotência emergente. Os Estados Unidos são a superpotência reinante. O potencial de confrontos destrutivos entre os dois gigantes parece ilimitado. Mas os dois países também estão intimamente interligados. Caso não consigam manter um relacionamento razoavelmente cooperativo, poderão causar muito estrago não só um ao outro como a todo o planeta.

A China é rival dos Estados Unidos em duas dimensões: poder e ideologia. Essa combinação de atributos pode trazer à mente o confronto contra as potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial ou contra a União Soviética na guerra fria. A China é muito diferente desses dois dois exemplos, é claro. Mas seu poderio também pode se provar muito superior.

O crescente poder, econômico e político, da China é evidente. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), sua renda per capita em 2017 foi equivalente a 14% da renda per capita dos Estados Unidos, a valores de mercado, ou a 28%, em termos de paridade de poder aquisitivo. Em 2000, ela equivalia a 3% e 8% da renda per capita americana, respectivamente.

E no entanto, porque a população da China é mais de quatro vezes superior à dos Estados Unidos, seu Produto Interno Bruto (PIB) em 2017 equivaleu a 62% do norte-americano a preços de mercado e a 119% em termos de paridade de poder aquisitivo.

Presuma que, em 2040, a China venha a atingir uma renda per capita equivalente a 34% da americana pelo critério de preços de mercado e a 50% pelo critério de paridade de poder aquisitivo. Isso implicaria uma dramática desaceleração no ritmo de recuperação de seu atraso com relação aos Estados Unidos (uma queda de cerca de 70%, a partir de 2023, ante o nível médio de crescimento registrado pela China desde 2000.) Nesse caso, o PIB chinês seria quase 30% maior que o norte-americano em termos de preços de mercado e quase 100% maior em termos de paridade de poder aquisitivo, naquele ano.

O referencial de 34% que escolhi toma por base a renda per capita portuguesa atual, com relação à americana. É difícil imaginar que a China, com sua vasta poupança, população motivada, imensos mercados e forte determinação, não venha a atingir nível de prosperidade semelhante ao de Portugal. O país continuaria a ser muito mais pobre com relação aos Estados Unidos do que o Japão e a Coreia do Sul - as economias leste-asiáticas que apresentavam crescimento mais rápido no passado.

Tamanho importa. É altamente improvável que a economia da China não termine por ser muito maior do que a dos Estados Unidos, ainda que, em média, os cidadãos norte-americanos continuem individualmente mais prósperos que os cidadãos chineses. A China já é um mercado de exportação maior que os Estados Unidos para muitos países significativos, especialmente no leste da Ásia.

Além disso, a China vem investindo em pesquisa e desenvolvimento uma proporção de seu PIB semelhante à investida pelos principais países de alta renda. Isso impulsionará a inovação na China, o que eu pude ver em pessoa em uma visita à sede do Alibaba em Hangzhou. Além disso, a combinação entre tamanho da economia e avanço da tecnologia está fazendo da China uma potência militar cada vez mais formidável. Os Estados Unidos podem se queixar disso. Mas não têm o direito moral de fazê-lo. A autodefesa é um direito nacional universalmente aceito.

E o mesmo pode ser afirmado sobre o direito ao desenvolvimento. Os Estados Unidos podem resmungar o quanto quiserem sobre o roubo de propriedade intelectual pela China. Mas todas as nações que estão batalhando por recuperar o atraso, o que certamente se aplicava aos Estados Unidos no século 19, tomaram ideias alheias e as usaram como base para sua expansão.

A ideia de que a propriedade intelectual é sacrossanta tampouco procede. É a inovação que é sacrossanta. Os direitos de propriedade intelectual tanto ajudam quanto atrapalham, com relação a isso. É preciso encontrar um equilíbrio entre direitos frouxos demais e rígidos demais. Os Estados Unidos podem tentar proteger sua propriedade intelectual. Mas qualquer ideia de que tenham o direito (ou, aliás, a capacidade) de impedir que a China inove em busca de prosperidade é uma completa loucura.

A China também é um desafiante ideológico para os Estados Unidos, em duas dimensões. O pais tem o que se poderia definir como uma economia de mercado planejada. Também tem um sistema político não democrático. Infelizmente, as falhas recentes do livre mercado deram mais prestígio ao primeiro desses fatores. E a eleição de Donald Trump, um admirador do despotismo, tornou o segundo mais atraente.

No passado, também se poderia dizer que os Estados Unidos contam com o benefício de aliados poderosos e dedicados. Infelizmente, Donald Trump está travando uma guerra econômica contra eles. Se uma decisão de atacar a Coreia do Norte levar à devastação de Seul e de Tóquio, poderemos estar diante do fim das alianças militares americanas. Uma aliança não pode ser um pacto de suicídio.

Administrar a competição entre essas duas superpotências será difícil. Graham Allison, da Universidade Harvard, encara a situação com fatalismo em seu livro "Destined for War" [destinados à guerra]: é quase impossível evitar conflitos entre uma potência reinante e uma potência ascendente. Mas uma guerra escancarada entre potências nucleares pareceria relativamente improvável.

No entanto, fricção em larga escala, e com ela o fim da cooperação necessária ao bom relacionamento econômico, parece provável. Não está claro como se poderia resolver os atuais conflitos quanto ao comércio internacional. A cooperação para a administração dos bens comuns do planeta já desabou, tendo em vista a rejeição pelo governo Trump de qualquer ideia de que o clima esteja mudando.

O futuro da China cabe à China decidir. Mas quanto ao relacionamento entre a China e o Ocidente, este último tem voz. Os Estados Unidos têm razão ao insistir em que a China respeite seus compromissos. O mesmo se aplica, porém, aos americanos e aos demais países do Ocidente. A China não se sentirá compelida a respeitar regras preestabelecidas caso seja pressionada por países que as tratem regras com desdém. E de qualquer forma a China não é a verdadeira ameaça. O relacionamento com ela certamente pode ser administrado.

A ameaça é a decadência do Ocidente, o que inclui especialmente os Estados Unidos - a prevalência do rentismo como forma de vida econômica, a indiferença ao destino de grande proporção da população, o papel corruptor do dinheiro na política, a indiferença à verdade, e o sacrifício do investimento de longo prazo em favor do consumo privado e público.

É de fato uma tragédia que a melhor maneira que encontramos de escapar a uma crise financeira tenha sido a adoção de políticas monetárias que acarretam o risco de promover novas bolhas. Poderíamos ser melhores que isso.

O Ocidente pode e deve conviver com a China ascendente. Mas ao fazê-lo deve manter a fidelidade para com o lado melhor de sua natureza. Se o objetivo é administrar a atual virada na roda da história, o Ocidente precisa contemplar o que traz dentro de si.
 
 Tradução de PAULO MIGLIACCI

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