Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

O preço do populismo

Antielitismo ameaça a democracia liberal e o capitalismo; reforma é a resposta?

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As forças populistas estão em alta no mundo transatlântico. Produziram a votação em favor da saída da União Europeia (Brexit), no Reino Unido; a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos; e um governo que consiste dos partidos Cinque Stelle e La Lega, na Itália. Populistas autoritários estão no controle na Hungria e Polônia. O partido direitista AfD (Alternative für Deutschland, Alternativa para a Alemanha) está em ascensão na Alemanha. Populistas estão bem posicionados na Áustria, França, Holanda e Suécia.

O traço comum entre todos esses movimentos é a rejeição à elite ocidental contemporânea e à síntese entre democracia liberal, governo tecnocrático e capitalismo mundial que isso produziu. É uma revolução contra o sistema. E também pode se provar um ponto de inflexão histórico que deixaria a democracia liberal, o capitalismo mundial, ou ambos, no passado. Que venhamos a ter um desfecho assim radical dependerá da maneira pela qual o sistema responda, e dos desdobramentos políticos e econômicos dos próximos anos.

Os três livros que comento aqui têm semelhanças importantes, mas também diferenças reveladoras nas maneiras pelas quais analisam o que está acontecendo.

Barry Eichengreen é um historiador econômico respeitado que defende a posição "liberal", na terminologia americana, da maioria dos membros da elite política dos Estados Unidos. Robert Kuttner leciona na Universidade Brandeis, mas é mais conhecido como jornalista com visões fortemente "social-democratas" ou "democráticas socialistas". Charles Dumas é um macroeconomista britânico, que analisa a economia mundial de maneira heterodoxa e muitas vezes penetrante, de seu posto como economista chefe da TS Lombard, uma companhia de pesquisa econômica. Seus livros mais recentes ajudam a iluminar aspectos desses importantes, complexos e muitas vezes ameaçadores desdobramentos contemporâneos.

"The Populist Temptation" [a tentação populista], de Eichengreen, é um livro de análise histórica lúcida. Ele relata a história dos movimentos antielite americanos e europeus, muitas vezes eivados também de xenofobia e autoritarismo, nos dois últimos séculos. Discute suas raízes, que "combinam insegurança econômica, ameaças à identidade nacional e um sistema político apático". Também argumenta, de modo mais otimista, que movimentos como esses "podem ser combatidos por reformas econômicas e políticas que atendam às preocupações dos insatisfeitos". O exemplo clássico de reforma bem sucedida, em um momento muito propício ao autoritarismo populista, foi o New Deal do presidente americano Franklin Roosevelt, na década de 1930.

O autor pergunta se uma nova rodada das reformas necessárias é politicamente viável, ou capaz de gerar frutos com rapidez suficiente para conter a maré populista. Eichengreen conclui que nem os Estados Unidos, com sua feroz hostilidade à ideia de que o governo possa ser a solução, e nem a União Europeia, com sua governança tecnocrática e complexas barganhas entre países membros, estão em boa posição para responder. Mas os populistas mesmos, em geral indiferentes aos limites impostos pela realidade, tampouco oferecem boas respostas. Seu argumento final –não há "soluções fáceis"– pode ser realista mas é decididamente deprimente.

Kuttner faz um chamado às armas contra esse tipo de derrotismo. Seu livro, "Can Democracy Survive Global Capitalism?" [a democracia é capaz de sobreviver ao capitalismo mundial?] começa pelo New Deal e a social-democracia criada na Europa Ocidental depois da Segunda Guerra Mundial, com apoio dos Estados Unidos. Sob esse sistema bem sucedido, ele argumenta, caracterizado por crescimento rápido, pleno emprego e igualdade sem precedentes, a democracia conteve o capitalismo. Embora as economias tivessem se integrado mais, por meio do comércio, os governos estavam firmemente em controle, os mercados de trabalho eram regulamentados, os sindicatos eram fortes e, acima de tudo, o sistema financeiro vivia enjaulado.

Depois, argumenta Kuttner, veio a desastrosa contrarrevolução da década de 1980 e o relançamento do capitalismo desregulamentado. Os resultados incluíram a emergência de uma elite de negócios imensamente poderosa e rica, o colapso do movimento sindical, crescente insegurança no trabalho, uma disparada na desigualdade, instabilidade financeira e, inevitável e perigosamente, a ascensão de atitudes populistas, xenofóbicas e autoritárias em proporção crescente da população.

Enquanto Eichengreen propõe uma ampla variedade de reformas sensatas, Kuttner apela por recolocar o capitalismo na jaula. O sistema emergente, ele conclui, será "ou mais autocrático e mais controlado pelo capital - ou mais democrático e menos capitalista".

Dumas fala muito menos sobre política e muito mais sobre macroeconomia mundial. Em "Populism and Economics" [populismo e economia] ele aponta que os choques políticos dos 10 últimos anos tiveram origem em três mudanças na economia mundial: o ingresso na economia mundial de economias que ofereciam bilhões de trabalhadores de baixo custo, quando a China e depois a Índia abriram seus mercados e o império soviético despencou; a mudança tecnológica; e, não menos importante, o surgimento de um imenso superávit de poupança estrutural na "Eurásia", ou, mais precisamente, no norte da Europa, centrado na Alemanha; e no leste da Ásia, centrado na China e Japão.

Esses superávits propeliram déficits compensatórios nos índices de poupança de outras regiões, especialmente os Estados Unidos e os países periféricos da União Europeia. Estes foram estimulados por políticas monetárias frouxas e excessos financeiros, que terminaram inevitavelmente em uma imensa crise financeira. Dentro da zona do euro, os imensos superávits estruturais da Alemanha são particularmente problemáticos, porque não existe mecanismo funcional de ajuste a não ser transferir os superávits ao resto do mundo via um euro fraco, manter economias menos competitivas - especialmente a da Itália - em depressão quase permanente, ou uma combinação dessas duas coisas.

É impossível fazer justiça a tudo que esses três empolgantes livros têm a oferecer. Mas eles propõem pelo menos cinco questões importantes.

Primeiro, até que ponto a contrarrevolução populista é movida por forças econômicas? Todos os três autores concordam - e corretamente, em minha opinião - em que os desdobramentos econômicos explicam boa parte da revolta contra as elites. Todos os três destacam as tendências adversas, em longo prazo, para os trabalhadores menos capacitados, e a estagnação das rendas reais depois da crise, o que explica a insatisfação.

Embora a ansiedade quanto ao status e as questões de identidade importem, elas têm claras raízes econômicas e pesam mais em tempos de insegurança econômica. A ansiedade masculina certamente se relaciona ao declínio na posição econômica de muitos homens. Uma vez mais, a hostilidade com relação à elite é em parte consequência de sua cobiça econômica e incompetência. Acima de tudo, o socorro a bancos e banqueiros não foi esquecido e nem perdoado, especialmente nos Estados Unidos.

Mas uma mudança específica teve impacto político muito desproporcional aos seus efeitos econômicos: a imigração. Os economistas em geral concluem que o impacto econômico da imigração foi modesto e, em linhas gerais, benéfico. Mas as pessoas temem aquilo que lhes é estranho e visível, especialmente quando estão estressadas. Um elemento crucial, eu argumentaria - nos Estados Unidos, com os estrangeiros "não documentados"; no Reino Unido, com o influxo descontrolado de pessoas da União Europeia; e na Europa continental, com as multidões que chegam do outro lado do Mediterrâneo - é o medo de perder o controle da fronteira, e com ele o controle do país que "pertence" às pessoas que agora se sente ameaçadas.

Em termos mais amplos, a política democrática tem por raiz a ideia de cidadania. Cidadãos esperam que o Estado lhes dê preferência, ante os não cidadãos. A perspectiva social-democrata de Kuttner reconhece essa realidade. O liberalismo, individualista, tem mais dificuldade nesse sentido. A tensão é especialmente severa na União Europeia. Eichengreen cita um estudo de 2015 pela Eurobarometer no qual 52% dos residentes da União Europeia se definiram primariamente por sua nacionalidade. "Só 6% dos respondentes se definiram primeiro como europeus e depois pela nacionalidade, e apenas 2% deles se definiram apenas como europeus". Não existe um grande reservatório de lealdade à União Europeia. Ela precisa funcionar, para que mereça respeito. E para muita gente, não o fez, especialmente na crise da zona do euro.

Segundo, quais são os propulsores mais significativos dessas mudanças econômicas indesejáveis? É exagero atribui-las totalmente ao capitalismo mundial como um todo, que é a posição de Kuttner. Todos os países de alta renda se abriram mais à economia mundial nos últimos 40 anos. Mas nem todos sofreram alta semelhante, na desigualdade, ou reduções comparáveis na capacidade do Estado para fornecer bens públicos ou apoio social. Os Estados Unidos se viram em situação extrema quanto a isso. As escolhas de um país fazem diferença.

Isso também indica que exista espaço para diferenças políticas. Nos Estados Unidos, essa opção foi bloqueada pela elite republicana, que decidiu se concentrar em cortes de impostos e em aumentar a liberdade econômica das empresas, enquanto explora ansiedades raciais e culturais como fonte de votos. É uma versão atualizada da velha estratégia de segregação racial usada no sul do país. O populismo de direita de Trump foi o resultado natural disso. Essa estratégia política encontrou sucesso espantoso, mas seus resultados para a grande república - e para o planeta - são sombrios.

Kuttner argumenta que tudo de ruim aconteceu por conta do abandono da social-democracia surgida depois de 1945. Mas aquele foi um período excepcional, com oportunidades excepcionais. O crescimento da produtividade já havia decaído na década de 1970, bem antes da liberalização dos anos 80. As mudanças de política foram longe demais, como ele argumenta, mas isso aconteceu porque, àquela altura, já não era plausível manter as coisas como um dia foram.

Kuttner também sugere que o crescimento do comércio mundial trouxe zero benefício prático. Não é fato. A ascensão da China e da Índia trouxe a mais rápida e ampla redução da pobreza absoluta na história do planeta. Não resta dúvida de que a abertura ao comércio e ao investimento estrangeiro direto teve papel importante nisso. Ele também aponta que a perda de bons empregos industriais tem tudo a ver com a ascensão do capitalismo predatório e do comércio liberal. Isso tampouco procede. Todos os países de alta renda viram forte transferência de trabalhadores da indústria para os serviços e, em grau substancial, uma virada associada de empregos bons para empregos que requerem pessoal menos capacitado. Essas mudanças eram inevitáveis. A ascensão ainda maior dos robôs e da inteligência artificial, que está por vir, vai acelerá-las ainda mais.

Mas Kuttner está certo sobre a desregulamentação incompetente das finanças, especialmente a alta nos fluxos de capital transnacionais de curto prazo e a abundância de lacunas regulatórias. Caso os grandes países desejassem regulamentar as finanças ou tributar os capitalistas, certamente o fariam. E se os Estados Unidos desejassem enfrentar os países que acumulam grandes superávits em conta corrente, poderiam tê-lo feito.

Terceiro, quais podem ser as consequências da ascensão do populismo? Muitas possibilidades são visíveis. A benigna seria uma busca de reformas radicais que levem em conta os interesses e vontades da maioria. Mas a hostilidade dos populistas ao sistema pode se transformar, em lugar disso, em um ataque a todas as restrições à "vontade do povo", o que inclui as burocracias tecnocráticas, a imprensa livre e os tribunais. Isso já não parece uma possibilidade tão remota quanto no passado.

Não é por acidente que instituições mundiais governadas por regras tenham emergido de democracias nas quais a lei é respeitada. Há dois lados em cada moeda. Quando o despotismo arbitrário se torna norma, a ordem liberal internacional entra em colapso. Pessoas que deveriam saber melhor acreditam que isso não importa. Mas importa muito, como talvez descubramos em breve.

Quarto, como, então, poderíamos canalizar as forças populistas para fins frutíferos e não destrutivos? Os autores dos três livros indicam, de maneiras diferentes, que há grande necessidade de reforma. O sistema financeiro continua perigosamente frágil. O sistema tributário precisa se tornar mais justo e mais efetivo.

Só os governos são capazes de garantir educação de alta qualidade, uma infraestrutura bem desenvolvida e instituições eficientes - judiciais e outras. Os principais requisitos - e oportunidades - continuam a existir no plano nacional. Mas cooperação internacional também é muito importante.

Seria bom se o novo populismo tentasse realizar essas coisas. Infelizmente, como aponta Eichengreen, o que ele faz é basicamente desviar a atenção de coisas que importam para coisas que não, e jogar a culpa por tudo que acontece de errado sobre os estrangeiros e os imigrantes.

Por sim, será tarde demais? Ainda podemos esperar que um novo equilíbrio seja atingido, para preservar o melhor do que herdamos e remediar as coisas ruins. Para isso, porém, precisamos de políticas melhores e de políticos mais sábios. Isso aconteceu uma vez, na metade do século 20, como enfatiza Kuttner, mas só depois de imensos desastres. O que acontecerá desta vez? Essa é a grande questão irresolvida de nossa era.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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