Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Proponentes do 'brexit' não compreendem o projeto europeu

É legítimo acreditar que a União Europeia abusou de seus poderes, mas não desprezar suas metas

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"O que aconteceu com a confiança e os ideais do sonho europeu? A União Europeia foi estabelecida para proteger a felicidade. Era a União Soviética que impedia pessoas de saírem. A lição da história é clara: se você transformar o clube da União Europeia em uma prisão, o desejo de sair não diminuirá, e sim crescerá... e não seremos o único prisioneiro que vai querer escapar". Foi o que Jeremy Hunt disse em discurso na conferência do Partido Conservador britânico esta semana.

É uma declaração assombrosa. Assombrosa porque veio do secretário do Exterior, a pessoa encarregada de administrar as relações do Reino Unido com os estrangeiros; porque as negociações com a União Europeia, um grupo de estrangeiros especialmente importante e poderoso, estão chegando a um momento de crise; e porque veio de um homem que defendeu que o Reino Unido ficasse na União Europeia, na campanha do plebiscito. Foi assombrosa, acima de tudo, porque o paralelo estabelecido por Hunt entre a União Europeia e a União Soviética é estúpido e ofensivo.

Secretario do Exterior britânico, Jeremy Hunt
Secretario do Exterior britânico, Jeremy Hunt - Tolga Akmen/AFP

Os soviéticos despacharam tanques de guerra para Berlim Oriental em 1953, para Budapeste em 1956 e para Praga em 1968. A União Europeia de forma alguma está ameaçando o Reino Unido com brutalidade semelhante. Limita-se a afirmar que as propostas apresentadas pelo governo britânico para o acordo de retirada, especialmente o "Plano de Chequers", não funcionarão. Isso não é manter o Reino Unido em uma prisão; isso é negociar. O desacordo com as propostas britânicas para a retirada é simplesmente isso: um desacordo. E além disso a União Europeia está certa: o plano não vai funcionar.

Em um país sério, um secretário do Exterior que fizesse declaração semelhante, em um momento como este, sobre países tão importantes, e amigos, seria demitido. Que ele acompanhe Boris Johnson em seu retorno à bancada da base. Mas Hunt fez a declaração que fez por acreditar que essa forma de estupidez malevolente é popular no Partido Conservador. O que é aterrorizante.

Por trás da declaração insultuosa de Hunt há uma falta da imaginação necessária a compreender o que a União Europeia é. E no entanto isso é condição necessária para lidar com ela sensatamente, agora e no futuro. Para as pessoas que a lideram hoje, a sobrevivência da União Europeia é uma questão vital. As relações com o Reino Unido, que está deixando a organização, são comparativamente insignificantes.

A grande diferença está em que os ingleses em geral não sentem um medo entranhado nos ossos. A maioria dos povos da Europa continental tem sentimentos diferentes. Dos países da Europa continental, apenas Finlândia, Portugal, Espanha, Suécia e Suíça sobreviveram à Segunda Guerra Mundial sem serem conquistados. Quanto durou a soberania da Holanda em 1940? Quatro dias. Como um ministro irlandês me disse depois do referendo sobre a saída britânica da União Europeia ("brexit"), a União Europeia é acima de tudo um projeto de paz. Mas não se baseia apenas no medo. Também se baseia na esperança –de uma Europa próspera, integrada, capaz de falar em voz alta no mundo.

É legítimo rejeitar esse projeto. Os defensores do "brexit" o fazem. É legítimo acreditar que a União Europeia abusou de seus poderes. Quanto à união monetária, concordo. É legítimo acreditar que a União Europeia não usou seus poderes como deveria. Quanto à defesa, também concordo. Mas é ilegítimo, para uma pessoa sã, desprezar os objetivos da União Europeia ou expressar a esperança de que ela despenque de maneira caótica.

Objetivos criam estrutura. Esse é um projeto de paz que trabalha ao incorporar as relações mútuas a uma estrutura de regras aplicáveis igualmente e legalmente compulsórias. A confiança mútua necessária para fazer com que a União Europeia funcione depende disso. As regras precisam ser claras e estar sujeitas a um processo legal efetivo. Se os países começarem a receber benefícios sem cumprir obrigações, a União Europeia se desintegrará.

O Plano de Chequers não atende a esses requisitos: no caso dos bens, exige que o Reino Unido fique fora da área alfandegária da União Europeia, para que negocie acordos comerciais próprios, mas dentro da área alfandegária da União Europeia, para que seus produtos não estejam sujeitos a controles alfandegários e regulatórios por parte da união. A União Europeia também tem limites intransponíveis. Não pode dar carona aos britânicos. O Reino Unido não está aprisionado; só não está conseguindo o que quer. Gostemos ou não, a União Europeia é muito mais poderosa que o Reino Unido nessas negociações, porque é muito maior.

O Plano de Chequers surgiu como resposta à dificuldade de chegar a acordo quanto à Irlanda. No cerne da União Europeia está a ideia de que os países pequenos devem ser protegidos contra os países grandes (e assim os países grandes serão protegidos de si mesmos). Preservar a paz na ilha da Irlanda é mais importante para a União Europeia do que garantir que a área alfandegária do Reino Unido fique intacta. Desse ponto de vista, foi a retirada do Reino Unido que causou o problema, e cabe aos britânico resolvê-lo.

Não faço ideia de se haverá acordo, se o Parlamento o aprovará ou se haverá uma segunda votação. Mas se os fanáticos promoverem um mito da "punhalada nas costas", no sentido de que a teimosia da União Europeia privou o povo britânico da glória de um "brexit", o legado será venenoso. Políticos responsáveis não passariam nem perto disso. Mas Hunt não é uma causa de insanidade; ele é um sintoma.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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