Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Mundo desmorona com recuo dos Estados Unidos

Uma administração incapaz de governar mostra forte contraste com a China

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A Covid-19 não transformou o mundo, pelo menos até agora. Mas acelerou seu desenvolvimento, em termos tecnológicos, sociais e políticos. Isso se provou notavelmente verdadeiro nas relações internacionais: a separação entre a China e o Ocidente e o fracasso dos Estados Unidos como líderes do Ocidente se aprofundaram. A ordem mundial liderada pelo Ocidente está em crise. Se os Estados Unidos reelegerem Donald Trump, será uma crise terminal.

A China está se provando cada vez mais assertiva. Não se curva à devoção pelos direitos humanos que o Ocidente enfatiza, como se pode ver em seu tratamento brutal dos uigures e pela nova lei de segurança em Hong Kong. Sob Xi Jinping, imperador vitalício, a afirmação do status da China como superpotência e como despotismo está completa. O abandono do célebre conselho de Deng Xiaoping quanto a “esconder a força, esperar o momento, jamais tomar a iniciativa” é explícito. E no entanto a China precisa continuar a ser parte do esforço para administrar todos os desafios mundiais.

O Ocidente conta com ativos valiosos, em qualquer corrida contra a China por influência. Muita gente ainda admira seus valores centrais de liberdade e democracia. A influência cultural e intelectual do Ocidente continua a ser muito maior que a da China.

Os Estados Unidos foram capazes de criar e sustentar alianças duradouras entre países afins. Se somarmos os países que se alinham naturalmente aos Estados Unidos, incluindo os da Europa, o Japão, a Coreia do Sul, o Canadá, a Australásia e, cada vez mais, a Índia, seu peso econômico e político continua a ser imenso.

Mesmo assim as coisas desmoronaram. Os Estados Unidos sucumbiram a ferozes divisões internas que terminaram em nacionalismo inflexível. Trump é a personificação dessas divisões, como afirmou seu ex-secretário da Defesa, Jim Mattis. Ele também é o principal protagonista da rejeição por seu país de seu papel histórico como modelo mundial de democracia liberal e líder de uma aliança de nações com inclinações semelhantes.

Trump representa os Estados Unidos pós-valores. E também pós-competência. Mesmo quando os povos do mundo não gostavam do que os Estados Unidos faziam, imaginavam que o país soubesse o que estava fazendo. O assustador sucesso da administração Trump em desmantelar o governo mudou essa opinião, na era do coronavírus.

Este presidente e esta administração nem querem e nem sabem governar. O contraste com a China, apesar de todos os seus fracassos iniciais no combate à Covid-19, é gritante. Em artigo para a revista The Atlantic, James Fallows descreve o desmantelamento sistemático do sistema americano de resposta a pandemias, que era o melhor do planeta. Mas o fracasso não se deve apenas ao esforço para paralisar o governo. Deve-se também ao caráter do malévolo incompetente que o dirige.

O mundo reparou. O prestígio e credibilidade dos Estados Unidos foram criticamente danificados. Um dos símbolos do rompimento de relações é que a União Europeia, que conseguiu controlar a doença, ainda que não completamente, não esteja planejando permitir o retorno dos americanos, por enquanto.

Em artigo para a revista Foreign Affairs, Francis Fukuyama argumenta que a fundação de qualquer ordem política, especialmente durante uma pandemia, é um governo efetivo. Em um texto anterior ele argumentava persuasivamente que as ideias do Estado de Direito e da prestação de contas ao cidadão por meio de processos políticos democráticos se baseiam nisso: se o Estado não funciona, nada mais funciona. O governo Trump parece determinado a provar essa hipótese.

Uma aliança entre democracias liberais dedicada a criar um contrapeso para a China em algumas áreas, e a cooperar com sucesso em outras, é concebível. Mas não acontecerá se os Estados Unidos não se recriarem como um Estado funcional sob um presidente que não admire todos os líderes autoritários que encontra. Harold James, professor de história na Universidade de Princeton, já até escreveu um artigo sobre o “período soviético tardio” dos Estados Unidos.

Mas a China moderna tem fundações fracas. Seu Estado é inquestionavelmente efetivo e seu povo é trabalhador e tem forte espírito empresarial. Mas a ausência do Estado de Direito e da prestação de contas democrática torna o Estado forte demais e a sociedade civil fraca demais. A China se saiu bem ao abrir as portas ao mundo, como fez nas últimas quatro décadas. Mas se o mundo se fechar, se tornará difícil para o país manter um ritmo tão rápido de progresso.

Em “The Narrow Corridor”, Darren Acemoglu e James Robinson explicam o dilema que um despotismo efetivo enfrenta. O despotismo pode afrouxar as rédeas dos empresários, e os efeitos serão intensos. Mas, sem um Estado de Direito, o resultado inevitavelmente será um maremoto de corrupção, o que solapa a legitimidade do regime. O governante então terá de puxar as rédeas de novo, forçando as pessoas a se comportarem bem. Mas isso acarreta o risco de acabar com a vitalidade animal da economia.

É provavelmente isso que está acontecendo na economia chinesa hoje. Algumas pessoas parecem acreditar que a inteligência artificial e a coleta de vastas quantidades de dados permitirão que o planejamento central substitua o mercado. Nada é menos provável. A força motora da mudança está nas ideias que as pessoas têm na cabeça. E isso não pode ser planejado. As pessoas precisam de incentivos para criar coisas novas e desafiadoras. Será que o Estado chinês mais opressivo que temos agora vai fomentar essa atitude?

Assim, de um lado temos uma superpotência em ascensão, mas com pontos fracos reais. Do outro, a superpotência vigente, que perdeu o rumo. Quero que os valores centrais do Ocidente vençam e floresçam. Quero que a China prospere, mas não ao custo de erodir as sociedades que sustentam esses valores. Quero que a humanidade administre suas posições pacificamente, seu mundo frágil com sabedoria. Para que isso aconteça, os Estados Unidos continuam a ser a potência indispensável. O problema não é tanto Trump, mas sim que tantos americanos desejem que ele os lidere. A crise ocidental é uma crise de valores. Somos capazes de superá-la. Mas será difícil.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

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