Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari

Uma homenagem ao Shoshi Delishop, tão bom que foi salvo pelos clientes

Vida longa ao restaurante, sob nova gestão, e nosso respeito aos fundadores, que fizeram comida boa e abriram suas panelas para as calçadas do Bom Retiro

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Há alguns dias, saiu a notícia. O Shoshi Delishop está sendo resgatado financeiramente por um pool de investidores, desejosos de manter a ligação sentimental e a comida do lugar.

Fiquei feliz e triste. Feliz porque outras pessoas também sentem que esse era um lugar especial. Triste por descobrir que um dos donos, o Adi, morreu no último dia de outubro do ano passado.

O lugar sempre foi um dos meus preferidos depois de uma boa caminhada no sábado. Arregimentava uns amigos, saíamos andando da Paulista, descíamos pela Liberdade, Sé, cruzávamos o Anhangabaú, observávamos o movimento das lojas da rua Santa Ifigênia, os motoqueiros da General Osório, virávamos em direção à estação da Luz e atravessávamos a praça da Luz e, finalmente, o Bom Retiro.

Público participa do Mishmash, evento que marcou a nova fase do Shoshana Delishop, restaurante judaico do Bom Retiro
Público no antigo Shoshana Delishop, também chamado de Shoshi Delishop, restaurante judaico no Bom Retiro, no centro de São Paulo - Camila Picolo/Divulgação

Depois de caminhar entre gente, lojas de som e confecções, noias, monumentos, camelôs, ruas, calçadas, prédios históricos e parques do século 19, nada como chegar ao Bom Retiro para almoçar e pensar na cidade. No bairro que sempre foi dos imigrantes, o Shoshi Delishop se destacava pela comida e pela relação com a rua.

O dono e seu filho recebiam quem chegava com uma atenção individual e um sotaque forte. O humor dos dois parecia fazer parte de um vaso comunicante. Dependendo do dia, era melhor evitar um dos dois e aproveitar a hospitalidade do outro.

Sentávamos numa das duas mesas que ficam quase na rua, numa fronteira mais ou menos fluida entre a calçada e o interior. Recebíamos imediatamente nossa saladinha de repolho, temperadinha com limão e azeite, uma cortesia bem-vinda num dia quente. A cerveja gelada chegava logo e passávamos a acompanhar o movimento.

Quem passava recebia seu devido cumprimento, uns com intimidade, outros com deferência —"bom dia, senhor", a saudação vinha dirigida até os desconhecidos. As receitas eram guardadas a sete chaves. Uma ex-freguesa pediu a receita do pudim de leite candidamente e, ao receber a resposta negativa, chamou-o de "feio" e nunca mais voltou.

Com os maravilhosos gefilte fish, aqueles bolinhos de peixe com gosto de leste europeu num outono antes de a neve chegar, acompanhados de raiz forte, o almoço já estava ganho.

Os varenikes que se derretem na boca e a salada grega levantam a questão das identidades nacionais. O que veio de onde? A mistura do sabor polonês com o cheiro do mediterrâneo nos faz pensar que nada é tão original que não tenha tido influência de outros. O hibridismo cultural ganha contornos antropofágicos quando os bolivianos se encontram com os coreanos e todos passam em frente ao restaurante. Da Oficina Cultural Oswald de Andrade saíam bailarinos e curiosos. Nas paredes, em meio aos pôsteres de Jerusalém, nos calávamos diante do peso de tantas histórias num lugar só.

Depois do almoço multicultural, num bairro multicultural, entrávamos no centro cultural, para ver bailarinas e pensar na vida. A volta para o espigão era feita em passo lento, calados e felizes, pensando em varenikes, sotaques e cidades possíveis

Da última vez que estivemos por lá, muito antes da pandemia, ganhamos um "eu amo vocês", cheio de sotaque e de afeição, e um toque no ombro. Tomara que a comida e o carinho permaneçam.

Vida longa ao Shoshi Delishop, sob nova gestão, e nossos respeitos aos fundadores, que fizeram comida boa e abriram suas panelas para o caldeirão das calçadas do Bom Retiro.

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