Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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O escândalo do Plano Diretor

Sob a sombra de prédios feios e gigantescos, o futuro de São Paulo se desfaz com o substitutivo da Câmara que conseguiu piorar o que já era ruim.

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Em abril, escrevi que a revisão do Plano Diretor entregue pelo executivo tinha pouca chance de melhorar a vida dos paulistanos e que a verdadeira briga iria acontecer nas reuniões privadas nos gabinetes dos vereadores. Agora, após a Câmara reescrever tudo, temos duas certezas: primeira, a cidade vai mesmo piorar; e segunda, o processo de decisão está mesmo fora da arena pública.

É constrangedora, mas reveladora a cena do vereador Adilson Amadeu mandando mensagem ao Secovi pedindo apoio à reeleição do prefeito em contrapartida pela aprovação de suas propostas. É a concretização daquilo que já se imaginava: a Câmara ouviu centenas de sugestões de todos os setores, mas acatou primordialmente aquilo que vem do setor de construção civil.

O resultado é um plano que coloca em cheque o futuro de uma cidade em que mais da metade de seus habitantes mudariam se pudessem, com péssimas perspectivas diante do aquecimento global e sob um vácuo de liderança. Em vez de reconhecer a doença, a revisão do Plano Diretor propõe um novo ataque ao doente.

Mirante de Santana, na zona norte da capital paulista, onde a revisão do Plano Diretor quer liberar a construção de prédios no entorno; isso vai inviabilizar a estação do INMET  (Instituto Nacional de Meteorologia), utilizada para medir eventos climáticos
Mirante de Santana, na zona norte da capital paulista, onde a revisão do Plano Diretor quer liberar a construção de prédios no entorno; isso vai inviabilizar a estação do INMET (Instituto Nacional de Meteorologia), utilizada para medir eventos climáticos - Bruno Santos - 06.jun.2023/Folhapress

Era para ser uma revisão, mas o relator do projeto, o vereador Rodrigo Goulart, propôs um substitutivo cheio de novidades espantosas. Há uma zona de concessão especial, que permite que concessionários intervenham na cidade. Há a expansão das áreas onde se pode construir prédios mais altos. Há até uma esperteza matemática: o aumento linear do raio ao redor das estações de metrô de 600 para 1000 metros gera um aumento de área de 177%, ou quase três vezes o original.

O substitutivo propõe uma maneira mais suave das construtoras pagarem pelo direito de construir e mantém vantagens na área computável, mas não há palavra sobre a qualidade da cidade que estão gerando com a implantação dos novos prédios. O miolo dos bairros consolidados perde parte de sua proteção e até as vilas, coitadinhas, passam a estar sob ataque.

Claro que a Prefeitura ajudou a atrapalhar. Ao promover uma longa e burocrática revisão de cada item de um plano já gigantesco, a Secretaria de Urbanismo deixou de estabelecer as prioridades e ouviu pouco o Conselho de Política Urbana, uma instância que o próprio secretário Marcos Gadelho deixou de frequentar.

O adiamento da discussão da revisão também pode ter contribuído para aumentar o desbalanço, afinal as entidades ligadas à construção civil não pararam de produzir ideias, dados e propostas —e de construir.

De qualquer modo, o que deveria ser a maior liderança da cidade, o prefeito Ricardo Nunes não parece indignado com as mexidas da Câmara no Plano que saiu de suas estruturas nem com o diagnóstico do que deu errado nos últimos dez anos. E muita coisa deu errado.

O Plano Diretor previa dois grandes objetivos: trazer pessoas de todas as rendas para áreas de boa infraestrutura e trazer empregos para áreas com bastante gente. Quanto ao primeiro, sobrou densidade construída e faltou densidade demográfica —e diversidade, além da qualidade nos espaços públicos resultantes. No segundo objetivo, o diagnóstico é mais fácil. Nada de significativo foi feito.

Se o projeto de lei da revisão do Plano, feito em mais de um ano, era pouco instigante, o substitutivo, feito em poucas semanas pela Câmara, é inacreditável. Diante das tantas audiências públicas promovidas pela Câmara dos Vereadores, a pergunta que não quer calar é: em qual instância foram apresentadas as propostas incorporadas no substitutivo? Onde foram discutidas essas propostas e seus impactos? No auditório da Câmara, na internet ou numa sala com a portas fechadas?

Se nada mudar na segunda votação, o novo plano vale até 2029. Dos 55 vereadores, apenas 12 votaram contra a proposta na primeira votação. É pouco provável que a gritaria contra o plano faça os outros 43 vereadores mudarem de opinião, a não ser por uma pressão enorme de eleitores.

O pior, portanto, ainda está por vir: o zoneamento, essa lei que é o território das minúcias, das siglas incompreensíveis e dos advogados que sempre termina com alguma surpresa para quem mora nos bairros.

Em relação a isso, o Plano Diretor tem uma falha básica. Ele permite, mas não obriga que a Prefeitura crie planos para cada bairro antes do zoneamento.

Sem planos que ajudem a pensar na cidade a partir do espaço público e do combate à desigualdade, com um vácuo de liderança, a única saída que a cidade tem é uma mobilização contra os golpes da marreta legal naquilo que ela tem de mais importante: a urbanidade da vida cotidiana, a diversidade, as pessoas, suas vidas e seus encontros.

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