Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mauro Calliari
Descrição de chapéu trânsito

O fracasso do programa de segurança viária de São Paulo

Trânsito continua feroz, pessoas seguem morrendo e cidade continua ruim para quem se desloca

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em 2019, a Prefeitura de São Paulo lançou, com algum barulho, o Vida Segura, um programa para aumentar a segurança no trânsito. O princípio era o da Visão Zero, em que ‘nenhuma morte’ é aceitável.
De lá para cá, porém, o número de mortes no trânsito da cidade não só não caiu como está dando sinais de subir de novo. Em 2021, foram 823 mortos no trânsito da cidade. Em 2022, de acordo com o relatório produzido pelo governo estadual, o número deve ter sido bem maior que esse.

Esse resultado é desastroso para uma cidade que buscava se inspirar em Estocolmo, a fundadora da Visão Zero. Como percebe qualquer um que tenta atravessar uma rua na cidade, houve um retrocesso visível na atitude de quem dirige carros, motos e ônibus. Vale a pena esmiuçar um pouco o que está por trás dessa tragédia para a cidade.

Movimentação na avenida 23 de Maio, em São Paulo - Jardiel Carvalho - 20.jan.2023/Folhapress

Dados demoram um ano para serem contabilizados

O primeiro sinal de que algo está errado num projeto é quando falta informação. O relatório sobre as mortes no trânsito de 2021 ficou pronto mais de um ano depois. Sem informação, não há controle. A prefeitura admite o problema e atribui isso a uma falha técnica. Convenhamos, quando algo é importante, os números aparecem. Estamos falando de dados que não demandam programas sofisticados.

Pandemia

Mesmo nos anos de pandemia, São Paulo não conseguiu reduzir o número de mortes no trânsito. Sim, os acidentes caíram, mas não o número de mortes. A prefeitura atribui isso a um aumento na velocidade quando as ruas estavam vazias. Mais velocidade, mais letalidade nos sinistros. Agora que o trânsito voltou com tudo, aumentou o número de acidentes e o número de mortes subiu.

Motos

A frota de motos aumentou mais do que todos os outros meios. Hoje já representa 15% do total da frota de veículos da cidade. Só que há algo de muito errado quando esses 15% se envolvem em 55% dos acidentes com vítimas. São colisões com outros veículos, quedas e muitos atropelamentos: de cada 10 atropelamentos, 5 são de carros e quase 4 envolvem motos.

Ruas mais perigosas

O ranking das dez vias com maior número de mortos é assombroso. Quatro delas são estradas que passam no município, como a Fernão Dias ou a Bandeirantes, que cortam regiões muito habitadas sem muitas alternativas de travessias. As outras ruas são de jurisdição municipal. As marginais são as infames campeãs de mortes. Na marginal Tietê, que teve seu limite aumentado para 90km/h, morreram 30 pessoas no ano passado. Outras duas são avenidas tão mal construídas e sinalizadas que parecem estimular os atropelamentos e os acidentes: a Jacu Pêssego, com 17 (sendo 7 atropelamentos), e a avenida do Estado, com 13 mortes (sendo 7 atropelamentos).

Falta de fiscalização

É fácil constatar o descalabro no trânsito de São Paulo. Qualquer pedestre paulistano sabe que, quando o sinal fecha para os carros, é preciso esperar os retardatários antes de tentar a travessia e, mesmo depois, é preciso olhar para os dois lados, porque não é incomum topar com uma moto ou uma bicicleta trafegando na contramão.
A falta de fiscalização se estende, claro, ao barulho de escapamentos abertos e buzinas que causam outros tipos de problemas que nem cabem nesta coluna, mas que também pioram a experiência de viver na cidade.

Além de mortes, acidentes causam dor e traumas

Para cada morte contabilizada no trânsito, há mais de dez feridos. No ano passado, 8.439 pessoas saíram de casa e acabaram num hospital, com escoriações leves ou traumatismos com consequências para a vida inteira, como internação, tratamentos, recuperação e traumas.

Sensação de insegurança na vida cotidiana

Além de matar e ferir pessoas, o trânsito piora a vida urbana. O trânsito dá medo. Medo de deixar uma criança ir para a escola sozinha, medo de ir até uma farmácia, medo de cruzar uma avenida com cinco faixas de carros, mesmo quando a luz está verde para os pedestres.

Indagada, a prefeitura mandou uma lista grande de ações de enfrentamento do problema: criação dos boxes –aquelas áreas para os motociclistas na frente dos sinais–, redução de velocidade em 24 ruas, mais de 5.000 novas faixas de pedestres em dois anos, a faixa azul na 23 de Maio, o Manual de Desenho Urbano, as "áreas calmas" de Santana, Lapa e São Miguel e mais 300 km de ciclovias até 2024.
Apesar de boas, evidentemente, essas ações não estão sendo implantadas com velocidade suficiente ou na escala suficiente para fazerem a diferença.

Falta mudança de atitude no trânsito. Faltam ruas desenhadas para pedestres. Falta confrontar os milhares de pequenos acidentes quase diários por absoluta falta de cumprimento de regras básicas, como falar ao celular na direção, dirigir nas calçadas e na contramão. E falta, principalmente fiscalização preventiva.

Se a prefeitura teve o desejo de se inspirar num programa sueco de visão zero, onde nenhuma morte é aceitável, deve ter a coragem de promover uma revolução para que isso deixe de ser uma utopia inatingível.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.