Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mauro Calliari

Documentário dos Racionais MC's é chave para entender a desigualdade de São Paulo

Filme joga luz sobre periferia, violência, racismo e encontro entre zona Norte e zona Sul

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Racionais, das ruas de São Paulo pro mundo", na Netflix, é uma pedrada no vidro das percepções, como são os bons filmes. Esse documentário conta a história do grupo que conquistou um espaço no mundo da música e no imaginário de milhões de fãs, mas no fundo ajuda a entender um pouco da história da periferia de São Paulo. A música parece filha do lugar. O filme parece filho do lugar.

A criação dos Racionais MC's surge do improvável encontro da zona Norte e da zona Sul, no centro de São Paulo, num clube de rap, na Brigadeiro Luis Antonio. Na década de 1980, o largo São Bento era o ponto de hip hop e foi para lá que convergiram as duplas da Vila Mazzei —Edi Rock e KL Jay— e do Capão Redondo –Mano Brown e Ice Blue– para formar os Racionais.

O Capão da década de 1970 era quase rural. Tinha ruas de terra, mato e violência. No campo de futebol, Ice Blue e os colegas conviviam com cadáveres jogados ali depois de execuções. Para sair dali, o ônibus levava uma hora e meia até praça da Bandeira.

No Centro, o fascínio eram as luzes, as vitrines, os cabelos negros, os tênis, as lojas de disco, a Galeria do Rock e a Paulista. "Ir ao centro era como ir a Nova York."

Na periferia do filme, a cor dominante é o cinza. Nas cenas internas, presídios, ruínas, cimento. Nas externas, o mar de casas, ruas estreitas, corredores, lajes. O alívio está nos bares, na roda de samba e na beira da represa Guarapiranga, numa rara cena onde há árvores e água.

Os depoimentos são secos e firmes, a direção de Juliana Vicente é seca e firme. Não há cenas sobrando. A linguagem é áspera, enfática. O humor só aparece como surpresa, quase uma flor no concreto, como a lembrança de uma história do passado, mas os depoimentos passam longe da ironia. A ironia parece irrelevante diante da raiva. E a raiva é um motor potente para o filme, para a música, para os shows.

No palquinho do início da carreira ou nas superproduções após o sucesso, também não há espaço para condescendência, a atitude é cara feia, gestos, mãos para cima, punhos cerrados. Numa cena na antiga Febem, o recado para os internos é cifrado: "Ninguém aqui é melhor que ninguém para dar conselho". Cada um que faça o possível para não se dar mal. O inimigo está fora.

O inimigo é o "sistema". Às vezes ele se corporifica nos políticos, na polícia, ou nos playboys, mas o racismo é o maior vilão. Ele está em todas as partes. Os depoimentos do grupo carregam a consciência explícita do seu papel diante da falta de oportunidades e da injustiça. "Nossa música transforma mentes." E é possível que eles tenham mesmo ajudado jovens negros da periferia a conquistarem mais espaço e a sonharem mais alto. "Onde estiver, seja lá como for, tenha fé, porque até no lixão nasce flor."

"É o fim da senzala", decreta a empresária do grupo. Em depoimentos, porém, aparecem outras facetas do empoderamento, como o progresso material –"meu sonho era um tênis branquinho"— e algumas melhorias urbanas, como a chegada do metrô ao Capão. Mas não há final feliz à vista no documentário —"Estar vivo hoje é um milagre".

Para sobreviver ao ambiente hostil, o documentário joga algumas poucas âncoras. Uma é a música. Outra são as relações. As mães estão no dia a dia e nas histórias do grupo. Elas abrem a casa para os amigos, reagem até a ameaças de morte e oferecem carinho no meio da violência. Em cenas rápidas, aparecem aniversários, bolos e crianças, às vezes mais presentes, às vezes apenas intuídas. Nas viagens e nos shows, há sempre uma enorme equipe de parentes e amigos, rodando pela Marginal numa caravana de carros e ônibus.

Os homens dos Racionais envelhecem, questionam as escolhas que fizeram quando eram mais jovens, mas os depoimentos não dão margem a lamentações. No podcast de Mano Brown no Spotify, no que ele mesmo define como efeito da experiência e da idade, além de discussões sobre o racismo e a violência, também há espaço para conversas mais amenas com pessoas de várias áreas sobre arte, educação e crescimento pessoal.

Em 2018, o disco clássico do Racionais MC’s, "Sobrevivendo No Inferno", virou livro e acabou até incluído na lista de livros obrigatórios do vestibular da Unicamp. O grupo comemorou: "é a periferia invadindo a academia".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.