A merendeira desce, o ônibus sai
Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce
De madruga que as aranha desce no breu
E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu
Emicida
É comum ouvirmos que São Paulo não tem planejamento. Por essa conversa, a cidade seria o resultado de decisões aleatórias. Entretanto, quando olhamos para a profunda desigualdade urbana, parece haver razão para acreditar no contrário.
A divisão entre centro e periferia, o formal e o informal, a riqueza e a pobreza não é produto do acaso e sim de ações, obras, planos e omissões, todas numa direção comum. Essa é a tese do livro "São Paulo: O Planejamento da Desigualdade", da urbanista Raquel Rolnik, que já havia sido explicitada em outros textos dela, e principalmente no livro da coleção Folha Explica, de 20 anos atrás.
Se o livro é essencial, ele ganha concretude com seu prefácio surpreendente. Nele, Emicida consegue nos levar até a periferia de sua infância entrando no mato da Cantareira com a família para pegar madeira para construir sua casa. O terreno havia sido pago a um loteador desonesto, que sumiu. Tratores demoliram tudo. Depois de destruídos, os barracos foram reconstruídos e, como em tantos lugares de São Paulo, deram origem a um bairro, Jardim Brasil Novo.
A desigualdade está em pauta desde sempre em São Paulo, mas sua tradução ganha densidade com os artistas, escritores, músicos. Na década de 1960, o livro de Carolina Maria de Jesus foi uma janela aberta para dentro da favela do Canindé, para a miséria cotidiana, a fome, a indignidade: a cidade é a sala de visitas, a favela, o quarto de despejo.
Hoje, é preciso ir à música de Criolo, Mano Brown ou Emicida para entender a periferia.
A voz de alguém que cresceu nas franjas da cidade e conseguiu ser ouvido fora dela amplia a análise, gera empatia e indignação. A dona Maria da música que pega o ônibus de madrugada talvez seja aquela que vem do Grajaú até Alphaville para fazer o café do homem que tem um carro importado e fica em casa trabalhando no home office.
A expectativa de vida em Moema é de 80 anos. Em Cidade Tiradentes, é de 57 anos. Essa diferença de 23 anos é a o tamanho da desigualdade de regiões que supostamente fazem parte da mesma cidade.
Pois como chegamos a isso?
Até o início do século 20, o crescimento da cidade esteve associado a uma concentração urbana, ao redor das linhas de bonde. Nessa mancha urbana, moravam todos, desde os ex-escravizados até os imigrantes, a nova classe média, operários e os empresários da nascente industrialização.
A expansão urbana se dá às custas da perda de diversidade. A segregação é reforçada pela legislação. Enquanto a região central tem projetos urbanos, regras de zoneamento e de construção, as periferias surgem num limbo, entre a permissividade dos loteamentos particulares e a invisibilidade. Cortiços são proibidos. Por piores que fossem sua condição sanitária, permitiam que pessoas mais pobres morassem perto do centro. Ao se mudarem para longe, constroem moradias precárias, perdem empregos e dependem cada vez mais de um transporte irregular. A desigualdade só aumenta.
Uma das chaves mais interessantes trazidas por Rolnik para compreender a perpetuação da desigualdade está no sistema de representação. No início do século 20 a maior parte das pessoas simplesmente não tinha voz política —quem votava eram só homens alfabetizados e maiores de 21 anos.
Entre 1930 e 1953, a cidade deixou de poder escolher seus prefeitos. Mais tarde, o sistema de dependência se desenvolve. Sem alternativa, um grupo de pessoas constrói suas casas num loteamento irregular e espera que sejam legalizadas. Para que isso aconteça, é preciso contar com o beneplácito da prefeitura e aí surgem os intermediários, que se elegem como vereadores graças ao favor de trazer infraestrutura para a região. Assim, fecha-se um círculo de favores que sufoca a participação política.
Chegamos à cidade atual. A contradição, como sugere Rolnik está dada: de um lado a energia que sempre marcou a história da cidade. De outro, um mal-estar que toma conta de seus habitantes.
A resolução dessa contradição não tem resposta fácil, mas passa certamente pela diminuição da desigualdade. A inspiração está na renovação das relações entre as pessoas, na representação política, no espaço público, na ampliação de oportunidades, na própria reinvenção da cidade. A frase de Emicida lembra do óbvio esquecido, o que importa são as pessoas: "O concreto é sem dúvidas um grande símbolo da cidade, mas a vida com sua teimosia e pujança também é."
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