Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu trânsito

Do não lugar ao lugar: o ônibus onde as pessoas se encontram conta uma história diferente sobre a cidade

Não deixamos de viver enquanto estamos dentro de um transporte ou esperando por ele.

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Mauro Calliari

Esses dias, saiu uma reportagem que foi muito comentada. Trata-se da linha de ônibus 208M-10, na qual os passageiros se encontram cotidianamente. Saindo de Santana e indo até Pinheiros, em São Paulo, os simpáticos Careca e Lenco, respectivamente motorista e cobrador, dão o tom, cumprimentam as pessoas e fazem brincadeiras. O resto acontece naturalmente. Alguém traz um café, um docinho, os conhecidos se cumprimentam e alguns até fizeram um churrasco juntos.

Não é propriamente uma notícia, talvez seja até uma não notícia, mas abre uma janela sobre as surpresas da cidade. Contra as previsões, a cidade ainda se abre aos encontros imprevistos. E o mais interessante, nos espaços mais improváveis. Afinal, a linha 208M-10, como outros espaços de transporte, tem tudo para ser um lugar onde todos se desconectam do mundo e se conectam aos seus fones de ouvido. Mas não.

O motorista Almir José da Conceição, o Careca - Karime Xavier/Folhapress

Na década de 1990, o antropólogo francês Marc Augé lançou uma expressão que foi e continua sendo muito usada: os "não lugares", para tratar de espaços que não permitem vínculos e desestimulam o relacionamento entre as pessoas. "Um não lugar é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história", explica ele no livro "Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade".

Um exemplo de não lugares seriam as estações de transporte, como aeroportos ou terminais rodoviários. Nesses espaços, as pessoas passam sem estabelecer relações, quase como se a vida ficasse suspensa durante todo o tempo dos deslocamentos.

Se falamos de lugares de espera pelo transporte, o que dizer do transporte em si? Será que ônibus, vagões de trem oferecem a possibilidade de encontros e experiências significativas?

Anos atrás, saíram muitas reportagens sobre gente que pegava os ônibus fretados do interior para vir trabalhar em São Paulo e também estabeleciam laços pessoais. Na vinda, o pessoal lia ou dormia. Na volta, após o trabalho, havia comemorações de aniversário, conversas e brindes.

Que algo assim também aconteça no transporte público depõe mais a favor da beleza das pessoas do que propriamente do que da qualidade do sistema. É difícil manter o bom humor quando o ônibus atrasa, quando há filas gigantescas, quando não há papel higiênico nos banheiros dos terminais.

Em São Paulo, algumas estações de metrô romperam a bolha dos não lugares e se transformaram, de verdade, em lugares prenhes de significado. O conceito antropológico não captura a grandeza dos pequenos eventos. É comum o pessoal marcar para de se encontrar "logo depois da catraca". Na Liberdade, jovens se vestem como personagens de um anime (descobri que se chamam cosplayers). Na São Bento, aconteceram os encontros e os slams que impulsionaram o hip hop e o rap. Há um piano esperando que alguém toque na Estação da Luz.

Esses exemplos mostram que não dá para tratar as horas do transporte como um hiato, um parêntesis no dia. A vida insiste em acontecer também enquanto nos movemos em direção aos nossos afazeres.

Chegou a hora de tratar o transporte não apenas como espaços de passagem mas também como espaços onde há permanência, experiências e encontros. Há que dar vazão aos milhões de passageiros, claro, mas dá para ser muito mais. Se o transporte fosse mais confiável e menos cheio, se as estações tivessem o cuidado que oferecem algumas cidades europeias, dá para imaginar a mudança na qualidade da experiência.

Em várias cidades do mundo, há estações que, mesmo gigantescas, são espaços públicos de verdade. Em Londres, a King´s Cross criou uma praça agradável na frente da estação. Em Leipzig, a antiga gare de trem foi sendo renovada e hoje é um lugar de passeio, gastronomia, compras e encontros. As concessões dos terminais em São Paulo prometem, pelo menos, melhorar a qualidade dos serviços, limpeza, wifi e aumentar a oferta de comida. Dá para investir mais na criação de espaços de qualidade ao redor dos terminais. E na qualidade e pontualidade dos ônibus e trens.

Há ainda um último aspecto que o conceito do não lugar não consegue nem conseguiria abranger. Nas estações, trabalham centenas de pessoas, limpando o banheiro, supervisionando as filas, servindo pão de queijo ou ajudando um passageiro com deficiência visual chegar ao vagão. Não é possível admitir que não haja experiências significativas em cada minuto do dia. Até no ponto de ônibus há pipoqueiros e vendedores de churrasquinho e, dentro dos ônibus, há os motoristas e cobradores como o Careca e o Lenco.

Há significado nessas vivências e, com mais estrutura, qualidade e segurança, poderia haver muito mais experiências agradáveis e significativas no tempo que passamos em trânsito, esperando ou nos movendo.

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