Michael França

Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

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Escassez de água pode ter efeitos na vida do indivíduo antes de ele nascer

Maior incidência de choques climáticos extremos terá profundos desdobramentos negativos na perpetuação da pobreza

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É de conhecimento comum que em muitos países pobres e em vias de desenvolvimento há um expressivo contingente de pessoas que enfrentam tanto os desafios da pobreza quanto o de sobreviver a prolongados períodos de secas.

Contudo, existe um agravante que deveria ser mais bem compreendido e debatido. Os efeitos adversos das estiagens tendem a se agravar em um cenário marcado pelo aquecimento global. Isso faz com que intervenções bem orientadas do Estado sejam cada vez mais necessárias para procurar mitigar os seus impactos.

Na ausência de políticas públicas efetivas, a provável maior incidência de choques climáticos extremos nos próximos anos terá profundos desdobramentos negativos sobre a vida da população vulnerável e na perpetuação do ciclo da pobreza.

Cisterna em alvenaria do Programa Cisternas do governo federal em propriedade rural no município de Afrânio (PE)
Cisterna em alvenaria do Programa Cisternas do governo federal em propriedade rural no município de Afrânio (PE) - Karime Xavier/Folhapress

No caso brasileiro, o semiárido costuma ser um dos retratos da nossa miséria. Parcela da população não tem acesso adequado ao fornecimento de água. Diariamente, muitos precisam percorrer longas distâncias para garantir o abastecimento mínimo para atender às suas necessidades básicas.

Isso requer uma quantidade considerável de esforço que poderia ser mais bem empregado em atividades produtivas e, assim, alavancar o desenvolvimento local. Além disso, a seca e o processo de desertificação afetam a produção agrícola, causando um significativo impacto sobre a segurança alimentar.

A escassez de água também pode ter diversos efeitos na vida de um indivíduo antes mesmo de ele nascer. Os pesquisadores Rudi Rocha e Rodrigo Soares encontram evidência sugerindo que as secas estão correlacionadas com aumento da mortalidade infantil, diminuição do peso no nascimento e do período da gestação ("Water scarcity and birth outcomes in the Brazilian semiarid", 2014).

Nesse contexto, o governo federal implementou nas últimas décadas algumas políticas públicas com o intuito de procurar mitigar essa situação. Dentre essas iniciativas, milhares de cisternas, que representam uma das principais formas de a população do semiárido armazenar água, foram construídas.

Em um estudo cujo objetivo foi justamente avaliar os impactos dessa política pública, pesquisadores constataram que o acesso às cisternas no início da gravidez teve um efeito positivo no peso da criança ao nascer ("Climate adaptation policies and infant health: evidence from a water policy in Brazil", 2021).

Entretanto, conforme veiculado pela imprensa nas últimas semanas, o governo federal tem cortado recursos para essa intervenção. O Programa Cisternas atingiu o pico em 2014 e depois caiu até atingir o menor número da história, em 2021. Caso não haja nenhuma outra política com um propósito semelhante e melhor efetividade, isso pode afetar sistematicamente a capacidade do sertanejo de resistir aos choques climáticos.

Atualmente, o Nordeste brasileiro passa por uma severa estiagem. Em vários estados da região os açudes estão quase vazios e o quadro socioeconômico está cada vez mais árido. A cidade de Senador Elói de Souza declarou estado de calamidade pública devido à seca.

Segundo relato de Deojem Emanuel Gomes da Silva, 57, em reportagem de Renata Moura nesta Folha, até os lagartos que costumavam fazer parte da dieta da população mais pobre em tempos de escassez migraram atrás de água.

Nesse âmbito, é difícil ver a situação dos nossos compatriotas nordestinos e não se lembrar de dois trechos do livro "Vidas Secas" de Graciliano Ramos:

"Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: — Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita".

"Chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro." *

O texto representa uma homenagem à música "Súplica Cearense", de Luiz Gonzaga.

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