Michael França

Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

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Destruição de favelas não parece ter sido acidente

Sobre as cinzas de pobres, diversos empreendimentos imobiliários foram erguidos

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Durante muito tempo, o fogo foi amplamente usado na agricultura para eliminar ervas daninhas e preparar o solo para uma nova plantação. No Brasil, ele também costuma ser usado para devastar florestas enquanto abre caminho para a boiada passar. De forma semelhante, na área urbana, ele pode ser usado para queimar comunidades inteiras para atender a interesses privados.

Em testemunho dado numa entrevista para o jornal The Guardian, a ativista Irene Guimarães disse que havia óleo e pneus em alguns dos focos de incêndio que os moradores da Ocupação Esperança conseguiram deter no passado. Porém, em um determinado dia, eles não foram capazes de parar o fogo que consumiu quase 200 barracos.

Incêndio que destruiu parte da favela na avenida Zaki Narchi, em São Paulo, em 2020 - Lalo de Almeida - 9.jul.20/Lalo de Almeida

Entre 2001 e 2012, houve um surto de incêndios em favelas que não só destruiu as moradias e os bens daqueles que já tinham muito pouco, mas também incinerou várias vidas. Na ocasião, a matéria do The Guardian chamou a atenção para o fato de que os incêndios ocorriam em maior proporção em áreas mais valorizadas.

Favela Alba, em São Paulo, após incêndio em 2016 - Zanone Fraissat - 26.jul.16/Folhapress

Dado que os moradores de várias favelas não possuem a propriedade da terra, o fogo pode se tornar um artifício violento usado para limpar o terreno e pavimentar o caminho para expansão dos negócios do setor imobiliário.

Apesar de sugestivo, tal indício não foi suficiente para que as autoridades públicas procurassem realizar uma apuração mais aprofundada dos casos. Na época, houve uma esvaziada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Apenas 6 das 13 reuniões programadas foram realizadas.

As explicações das autoridades não foram muito além de responsabilizar a qualidade da infraestrutura das favelas e apontar que as moradias precárias e, em muitos casos, de madeira, faziam com que o fogo se alastrasse rapidamente. Isso tornava a tarefa de descobrir os motivos dos incêndios relativamente árdua. Porém, em um país imbricado em corrupção, é difícil saber se tais justificativas foram verdadeiras ou teriam sido, simplesmente, compradas.

O tempo passou. Os que sobreviveram perderam tudo, ou quase tudo, do pouco que tinham. Muitos não conseguiram se reerguer e viraram moradores de rua. Contudo, crimes costumam deixar rastros. Em 2022, o pesquisador Rafael Pucci encontrou evidências reforçando a concepção de que os incêndios não foram meros acidentes.

Para isso, no artigo intitulado "To Burn a Slum: Urban Land Conflicts and the Use of Arson Against Favelas", Pucci cruzou bases de dados de incêndios nas favelas de São Paulo ocorridos entre 2011 e 2016 com os do valor da terra estimado a partir do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Como resultado, ele mostrou que as chances de incêndio são positivas e significativas somente em lugares com alta valorização da terra cuja propriedade é do setor privado. Curiosamente, nos terrenos do poder público, o mesmo não ocorreu.

Essa é uma evidência importante. Na ocasião da CPI, a conclusão foi a de que não havia provas suficientes para falar de incêndios criminosos motivados por interesses imobiliários. Entretanto, é difícil imaginar outros motivos, além do dinheiro, que poderiam levar a maior ocorrência da destruição de favelas em terrenos valorizados do setor privado do que naqueles do poder público.

O dinheiro também levanta suspeitas sobre a comissão parlamentar. De acordo com uma apuração realizada pelo UOL, todos os membros da CPI, incluindo o presidente (Ricardo Texeira-PV) e a vice-presidente (Edir Sales-PSD), receberam expressivas doações de empresas imobiliárias para financiar suas campanhas eleitorais.

O texto é uma homenagem à música "Wildfires", composta por Cleopatra Nikolic e Dean Josiah Cover, interpretada por Sault.

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