Milly Lacombe

Escritora, colunista das revistas Trip e Tpm e autora de 'O Ano em Que Morri em Nova York'

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Milly Lacombe
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Eu não me conformo

A sombra do mercado caiu sobre nosso futebol

São Paulo

"Poesia", escreve o cuiabano Manoel de Barros, "é quando a tarde está competente para dálias; "poesia", ele segue, é quando "um sapo engole as auroras". O futebol sempre foi um tipo de arte para mim. Uma música que saía dos pés de Rivellino, Zico, Sócrates, Falcão, Zé Sérgio e, por que não, Cafuringa. Cresci sabendo que a maneira como jogávamos, capazes de dançar com a bola nos pés, de encantar o povo além-mar, era uma das mais belas poesias que oferecíamos.

Poesia em linguagem universal, que nunca precisou de tradução. E então a grotesca sombra das leis de mercado --que exigem que sejamos produtivos, eficientes e vencedores a qualquer custo-- caiu sobre nosso futebol. Já não bastava jogar ao ritmo do samba e da capoeira, agora era preciso dar chutão, construir defesas sólidas, formar volantes em ritmo industrial, pensar em não tomar gols, aprender a simular faltas.

Não sabemos jogar desse jeito tedioso? Não importa. Há quem saiba; basta copiar o que fazem os gringos. "Futebol não é arte", dizem os racionais, "futebol é resultado". Sendo assim, para analisar o jogo, precisamos de dados, estatísticas, números. Sejamos objetivos. Não vem ao caso se o time que teve 85% de posse de bola perdeu. Sigamos analisando os percentuais porque eles nos mostrarão o caminho da eficiência que trará patrocinadores. A CBF, afinal, é uma empresa privada que, como todas, quer lucrar. O jogador é um produto, então "media training" neles. Que não falem besteira, que não se metam em política. Façamos com que sejam peças lucrativas. Seguiremos sendo os melhores porque temos uma camisa que "entorta varal".

Nesse ambiente corporativo, era apenas questão de tempo para que Neymar Jr. nascesse: com todo o talento de que somos capazes, mas também cheio de marra, de firula, de simulações, de desinteresses. Não houve outro como ele: tínhamos craques que jogavam de pé, que não estavam concentrados em desmoralizar o adversário com dribles vazios porque queriam tirar música da bola. Éramos celebrados porque corríamos inundados da capacidade de emocionar. Perdíamos, claro, porque nem o mais ingênuo dos cidadãos acredita que para sempre vencerá, mas elevávamos quem nos assistia a um lugar de mais significado.

Hoje jogamos como todos os outros. Há quem goste. Não eu. Porque um dia nosso futebol foi um sapo que engolia auroras. E hoje não mais.

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