Milly Lacombe

Escritora, colunista das revistas Trip e Tpm e autora de 'O Ano em Que Morri em Nova York'

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Milly Lacombe
Descrição de chapéu Copa do Mundo

O jogo da morte

Futebol tem escolha política, da forma como um time entra em campo ao gesto para comemoração

São Paulo

No dia 9 de agosto de 1942, com a antiga União Soviética lutando contra a invasão nazista, um time de padeiros de Kiev, hoje capital da Ucrânia, derrotou um time de soldados nazistas mesmo sabendo que vencer significaria a morte.

O Start FC era formado por ex-jogadores profissionais que, com a guerra em andamento e sem campeonatos oficiais, trabalhavam em uma fábrica de pães. O time de Kiev passou então a jogar recreativamente e os alemães acharam que vencê-los faria bem à causa nazista. Mas, por mais organizados que fossem, os nazistas sempre perdiam para o Start, e as derrotas começaram a envergonhar Hitler e sua tropa.

A fim de decretar de uma vez por todas quem era o povo superior, um último jogo foi marcado, e a ordem era deixar claro aos jogadores do Start que uma eventual vitória custaria suas vidas. A partida, disseram os nazistas aos adversários, deveria ser vencida pelos alemães ou haveria consequências.

Só que o roteiro começou a azedar quando o time do Start se recusou a fazer a saudação nazista antes do pontapé inicial. E pioraria: o Start ganhou por 5 a 3, levando o estádio ao delírio.

Logo depois, quase todos os vencedores foram enviados a campos de concentração, onde morreriam. Futebol e política são inseparáveis. É impossível tirar do jogo as camadas de dignidade e orgulho que ele é capaz de oferecer a um povo.

Tudo em uma partida de futebol é escolha política: da forma como um time entra em campo ao gesto adotado para comemorar o gol, passando pela decisão de evitar --ou não-- manipular o juiz e a torcida exagerando faltas e executando outras manobras de ética duvidosa.

Explicar cai-cai com "todos fazem" é justificar os mais variados tipos de imoralidades, nas mais diferentes arenas da vida. Quem faz pouco caso de ganhar com tanta encenação não tem por que reclamar da frouxidão moral de políticos e empresários; trapacear em campo, sonegar na vida.

Um dia já jogamos ao ritmo da capoeira e do samba e encantamos o mundo; hoje jogamos ao ritmo das leis da produtividade, que, seguindo a moral do mercado, mandam vencer a qualquer custo.

Não me emociona, convence ou orgulha. Sou como Eduardo Galeano: quando um bom jogo acontece, agradeço ao milagre e não me importo em saber que seleção, afinal, me presenteou com aquela poesia.

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