Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

Brasileiros morrendo de fome e os vermes se empanturram de frango com farofa

Os psicopatas debocham da fome, da miséria e da morte dos brasileiros

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Confesso que senti muita raiva quando vi o vídeo do "frango com farofa". A cena é ainda mais revoltante por ter sido postada em um momento trágico em que os brasileiros estão morrendo de fome. O "Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil" (divulgado pela Rede Penssan em 2021), mostrou que o Brasil voltou a ter a fome como problema estrutural: 19,1 milhões de brasileiros estão passando fome e 116,8 milhões sofrem algum grau de insegurança alimentar (52,2% dos lares brasileiros). Como o Brasil, que é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, voltou a não ter o que comer?

Enquanto vermes se empanturram de frango com farofa (e de picanha de R$ 1.800 o quilo), brasileiros estão implorando por ossos, garimpando restos de comida em caminhões de lixo e disputando pelancas descartadas por supermercados.

A antropóloga Mirian Goldenberg em encontro com Betinho no comitê pró-constituinte do Rio de Janeiro, nos anos 1980
Mirian Goldenberg em encontro com Betinho no comitê pró-constituinte do Rio de Janeiro, nos anos 1980 - Arquivo pessoal

No mesmo dia em que o vídeo vergonhoso foi postado, encontrei uma foto minha com Betinho, de 1987.

Eu coordenei o escritório de uma organização não-governamental de 1980 a 1986. Foi quando conheci e trabalhei em muitos projetos sociais com Betinho.

Depois que saí da ONG, ele me chamou para coordenar a Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), mas não pude aceitar o convite pois já havia decidido fazer o meu doutorado.

Continuei amiga e trabalhando com o Betinho até 1997, quando ele morreu. Ele era hemofílico e morreu, aos 61 anos, com Aids que contraiu em uma das transfusões de sangue que precisava fazer periodicamente.

Betinho dizia que "comemorava a vida todas as manhãs". Ele sonhava com um Brasil mais justo, democrático e igualitário. Um Brasil livre da fome, da miséria e da violência.

Na década de 1990, Betinho liderou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, com o slogan "Quem tem fome tem pressa". Ele conseguiu mobilizar o país inteiro em um movimento de doação de alimentos para milhões de brasileiros.

Betinho tinha muitas qualidades que eu admirava: carisma, simplicidade, força, coragem, generosidade. Mas a que mais me encantava era a capacidade que ele tinha de unir pessoas muito diferentes em torno de projetos sociais.

Nas inúmeras reuniões em que participei com ele, Betinho era sempre o último a falar. Ele escutava com muita atenção e respeito todos os presentes, às vezes durante horas, e, no final, costurava as melhores ideias e propunha uma ação concreta e imediata.

Tive o privilégio de ser amiga do Betinho em uma fase da minha vida em que eu ainda tinha muita esperança no Brasil.

Ele me ensinou que não adianta nada ficar só xingando os covardes, vagabundos, genocidas, fascistas, sádicos, assassinos, monstros, mentirosos, asquerosos; que discursos indignados não servem para nada se não se traduzirem em ações práticas; que não adianta ficarmos revoltados se não fizermos o máximo e o melhor para mudar a realidade; que é necessário escutar os que pensam diferente de nós para construir pontes que unam os brasileiros. Ele me ensinou que eu poderia fazer alguma diferença no mundo.

Ao ver tantos fanáticos que defendem e se identificam com psicopatas que debocham da fome, da miséria e da morte de milhões de brasileiros, sinto-me cada vez mais impotente, triste e desesperançada. Mas ainda quero (e preciso) mudar o mundo. Precisamos de mais Betinhos para salvar o Brasil da fome, da miséria, do preconceito, do ódio e da violência. Precisamos de mais Betinhos para voltar a ter esperança no Brasil.

Hoje senti uma saudade ainda maior e chorei ao rever um vídeo do Betinho no YouTube:

"Há muito tempo atrás uma floresta cheia de árvores, pássaros e flores começou a pegar fogo. Os animais corriam tratando de salvar a própria pele. Foi aí que um leão parou ao ver que um beija-flor pegava a água no rio, jogava no fogo e voltava para o rio.

‘Ah, beija-flor, você acha que sozinho vai apagar este fogaréu todo?’, disse o leão.

E o beija-flor respondeu: ‘Sei que não posso apagar este fogo sozinho. Estou apenas fazendo a minha parte’".

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