Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Descrição de chapéu Corpo

'45 do Segundo Tempo'

O futebol como metáfora da vida

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Por que, até hoje, os "homens de verdade" não podem chorar e confessar seus medos, fracassos e impotências?

No filme "45 do Segundo Tempo", Pedro (Tony Ramos), dono de uma cantina italiana; Ivan (Cássio Gabus Mendes), um advogado bem-sucedido; e padre Mariano (Ary França) se reencontram, após décadas de distância, para reconstruir uma fotografia da inauguração do metrô, em 1974. Faltou um amigo, Ernesto, que sofreu um infarto e morreu.

Pedro está endividado, não consegue pagar os empregados nem comprar a carne para a brachola, especialidade da cantina. Calabresa, uma cadela bem velhinha, é sua única companheira e confidente. Quando Calabresa morre, Pedro decide se matar.

Cena do filme '45 do Segundo Tempo' com os atores Tony Ramos, Cássio Gabus Mendes e Ary França no meio da torcida do Palmeiras
Cena do filme '45 do Segundo Tempo' com Pedro (Tony Ramos, ao centro), Ivan (Cássio Gabus Mendes, de azul), e o padre Mariano (Ary França) - Divulgação/Paris Filmes

"Eu não pedi para nascer, mas desde então eu estou tendo um trabalho da porra para me manter de pé. A estrada foi ficando repetitiva, não tem sentido eu ficar rodando, rodando, rodando, só porque o motor está funcionando ainda".

Os três amigos refletem sobre as merdas que fizeram e questionam o significado da vida.

"O que a gente quer da vida? O mundo fica melhor por minha causa? Por que a vida tem que ter sentido? Sua cachorra achava que a vida tinha que ter sentido? Se ela tivesse carinho e comida, a vida dela estava resolvida, não é? O sentido da vida é estar vivo. Estar vivo, só isso."

Ivan critica o velho amigo: "Eu acho covarde se matar", Pedro responde: "Tem que ter colhão para assumir que a gente já está meio morto".

Palmeirense fanático, Pedro quer esperar o fim do campeonato para ver o seu time campeão e, assim, morrer mais feliz.

Ao longo do filme, as crises existenciais, as angústias e desejos dos três se revelam. Pedro quer morrer; padre Mariano quer transar; Ivan quer manter o casamento com Lilian (Denise Fraga) e se arrepende de nunca ter dado um abraço no filho: "Eu trabalhei como um condenado para provar que era um homem de verdade".

Ivan diz: "Quem quer se matar não avisa". O padre discorda: "Avisa, sim, a gente é que não escuta".

O padre tenta convencer Pedro a desistir de se matar: "E se você tentasse um trabalho voluntário? Uma grande oportunidade de você conhecer pessoas novas". Pedro reage: "Vocês não estão me escutando".

Pedro tem a certeza de que a melhor fase da vida foi em Areado e convence os amigos a viajarem para ver como está Soninha (Louise Cardoso), viúva de Ernesto e musa da adolescência dos três.

"Já estamos fudidos, mesmo. Vamos para lá: foda-se! Foda-se!".

O padre concorda: "A gente se fudeu, mas talvez ainda dê tempo de consertar".

No ano passado, tive a alegria de participar, junto com Tony Ramos, do painel de encerramento do MaturiFest 2021, onde falei sobre a importância da amizade e sobre os propósitos que dão significado às nossas velhices.

Tony Ramos, aos 73 anos, é o oposto de Pedro. Além de são-paulino, é um homem apaixonado pela esposa, filhos e netos; cercado de amigos e com uma vida plena de significado. Tony Ramos sonha com a volta do clima de paz nos estádios para poder levar a neta para torcer e ficar feliz com a vitória do São Paulo. Ele afirmou que: "’45 do Segundo Tempo’ é um filme que me dá muita alegria, que me deu um dos mais belos momentos da minha vida profissional".

Na minha pesquisa sobre envelhecimento e felicidade, Tony Ramos é apontado, junto com Fernanda Montenegro, como o melhor exemplo de uma bela velhice: um ator maravilhoso, reconhecido e admirado por todos os brasileiros, que está sabendo envelhecer com propósito, tesão, alegria e vontade de viver.

Luiz Villaça, diretor de "45 do Segundo Tempo", está muito feliz por ter dirigido um filme em que os homens podem chorar e falar sobre seus medos, fracassos e impotências.

"É uma solidão profunda e desesperadora: os homens não podem falar, não podem chorar. Em função do desespero de Pedro, os outros abrem o jogo e entram em campo para confessar suas próprias vulnerabilidades. Nós somos criados com tantas obrigações e pressões que chega o momento do foda-se. É preciso ligar o foda-se nessa fase da vida, senão você morre ou se mata. Cansei de ser homem, não aguento mais, como escreveu Neruda".

Ele espera que o filme faça parte de um reencontro urgente que todos os brasileiros estão precisando. "Precisamos nos escutar, olhar, abraçar, rir e chorar. Os homens também precisam falar".

Luiz Villaça citou o poeta chileno Pablo Neruda: "Acontece que me canso de ser homem" e, em "45 do Segundo Tempo", padre Mariano diz: "A gente se fudeu, mas talvez ainda dê tempo de consertar". Fiquei aqui pensando no próximo jogo decisivo das nossas vidas: a gente se fudeu e estamos exaustos de ser brasileiros. Será que ainda dá tempo de ganhar o campeonato?

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