Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo

A amante do meu pai

A violência física, psicológica e verbal mora dentro das nossas casas

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No domingo passado, sonhei com o meu pai e com a amante do meu pai. Estávamos em um cinema e eu escolhi o filme que iríamos assistir: "Daddy", uma comédia, com o ator Owen Wilson. Não consegui interpretar o sonho nem descobrir o significado de o ator Owen Wilson estar nele. Mas o que importa é que, assim que acordei, fiquei com vontade de encontrar a amante do meu pai. Entrei no Google para descobrir se ela ainda está viva, mas não achei nada sobre ela. Acho que ela, se estiver viva, deve ter 80 anos.

Minha mãe nasceu na Polônia, meu pai na Romênia. Eles só falavam em iídiche em casa para os filhos não entenderem os motivos das suas brigas constantes e explosivas.

Em casa, meu pai era um homem violento, espancador dos filhos e da esposa. Assisti a verdadeiras cenas de tortura. Até hoje parece que estou (re)vivendo uma cena dele dando cintadas nas costas do meu irmão do meio, com ataques de fúria que não conseguia controlar. Ele só parava quando o sangue escorria pelo chão da sala.

Meu pai estava sempre alcoolizado, até mesmo quando dirigia. Não é a toa que eu vomitava em todas as viagens quando íamos de Santos para Atibaia.

Ao mesmo tempo, era um homem que adorava ler. Ainda menina, devorei todos os livros da estante da sala. Eu gostava de ler e de reler os livros de psicanálise (Freud, Erich Fromm, Karen Horney, Melanie Klein) e os de histórias e testemunhos do Holocausto. Os livros do meu pai foram a minha salvação.

Eu era uma menininha magrinha, apelidada de Olívia Palito. Nas refeições, minha mãe ficava de pé, atrás da minha cadeira. Como eu não comia, ela puxava o meu cabelo. Cada puxão, eu dava uma garfada e engolia a comida. Quando ela ia resolver algum problema, eu corria para o banheiro e jogava toda a comida na privada.

Lembro-me de uma manhã em que, quando sai do único banheiro do nosso pequeno apartamento em Santos, onde morava com meus pais e três irmãos homens, meu irmão do meio me deu um soco tão forte no rosto que deslocou minha mandíbula. Duas vezes fui parar no hospital para levar pontos na cabeça: em uma delas ele jogou uma bicicleta em mim, na outra ele me bateu com um molho de chaves.

Também me lembro de um dia em que a secretária do meu pai me levou ao dentista. Eu tinha 12 anos, e o dentista ficou passando os cotovelos nos meus seios durante toda a consulta. Não contei isso para ninguém, com medo de apanhar.

Quando eu tinha 20 anos, meu pai me obrigou a ir com ele na formatura da secretária. Foi a primeira vez que eu tive a coragem de dizer não. Ele ameaçou me bater se eu não obedecesse. Eu reagi: "Bate em mim que eu bato em você, seu Mussolini sem bigode". Depois disso, fiquei 16 anos sem ver ou falar com meu pai.

Meu pai morreu aos 68 anos, de câncer no pâncreas, cem dias depois de descobrir a doença. Cuidei dele desde o dia em que ele descobriu a doença até o último suspiro.

Meu irmão do meio, também alcoólatra, morreu, aos 50, de cirrose. Ele tinha a mesma profissão, a mesma violência e a mesma doença do meu pai. Fiz tudo o que pude para salvar a sua vida.

Minha mãe descobriu um câncer aos 60 anos e morreu dois anos e meio depois. Ela acreditava que o câncer havia nascido da dor de descobrir que meu pai tinha uma amante. Cuidei dela do primeiro até o último dia. Um mês depois da morte da minha mãe, em 1990, nasceu o meu livro "A Outra: um estudo antropológico sobre a identidade da amante do homem casado".

Mirian Goldenberg em 1990 com seu livro "A Outra"
Mirian Goldenberg em 1990 com seu livro "A Outra" - Arquivo pessoal

Da minha família, não me lembro de nada além de brigas, gritos e surras. Eu tinha medo de falar, de respirar, de existir, pois poderia apanhar sem qualquer motivo. Para sobreviver, me tornei invisível e me escondi no armário. Testemunhei, impotente, a violência e o horror dentro de casa. O que mais me doía não eram as surras, mas a tristeza, o desespero, a dor e o sofrimento da minha mãe. Sinto muita culpa e choro até hoje por não ter conseguido salvar a minha mãe daquele inferno.

Depois do meu sonho, senti vontade de ouvir a amante do meu pai. Afinal, só sei a versão da minha mãe: meu pai e a secretária trabalharam juntos, foram amantes durante 20 anos, ele pagou a faculdade dela e lhe deu de presente de formatura um fusquinha.

Será que a amante do meu pai está viva para me contar a sua versão desse drama familiar?

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