Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo Todas

Depois de quase morrer em um incêndio, descobri o propósito da minha vida

Como Clarice Lispector, escrevo para salvar a minha própria vida

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Em dezembro de 2021, alguns dias antes do meu aniversário, tive um sonho que até hoje estou tentando interpretar.

No sonho, eu estava na sala do apartamento de uma famosa escritora. Ela estava cercada de admiradoras e de amigas da infância, de um marido apaixonado e de dois filhos encantadores. Senti inveja da sua juventude, da sua beleza, do seu sucesso e da sua vida aparentemente perfeita.

No entanto, logo percebi que seu olhar era triste e assustado, como o de uma menininha traumatizada e desamparada.

A escritora me perguntou: "Mirian, o que eu preciso fazer para encontrar o propósito da minha vida?".

Respondi: "Tem que zerar para encontrar o que você realmente quer".

Fim do sonho. Acordei.

Depois de muito tempo tentando decifrar o enigma do meu sonho, percebi que o sofrimento da escritora não estava na falta de significado da sua vida, mas no excesso de coisas que ela fazia para tentar preencher seu vazio existencial.

Excesso de atividades, de responsabilidades, de obrigações e de compromissos desagradáveis.

Excesso de críticas, exigências, expectativas, insatisfações, frustrações, comparações, cobranças, competições, preocupações, angústias e ansiedades.

Excesso de noites de insônia, de sofrimentos, medos, inseguranças e vergonhas.

Excesso de vampiros emocionais, de parasitas, de sanguessugas, de golpistas e de pessoas tóxicas dentro da própria casa, família e trabalho.

Excesso de sacrifícios para tentar ser 100% perfeita e não cometer erros.

Ela se sentia à mercê dos desejos dos outros e prisioneira da tentativa desesperada de ser amada e reconhecida por todos.

"Tem que zerar para encontrar o que você realmente quer", dizia meu sonho.

Tem que zerar, chegar ao fundo do poço, mergulhar nas profundezas mais sombrias e assustadoras, para conseguir descobrir o que realmente é importante para você.

Como contei na minha coluna da semana passada, "Um anjo salvou a minha vida", o prédio em que eu moro pegou fogo. Eu e meu marido quase morremos intoxicados e fomos os últimos moradores a ser resgatados. Quando o bombeiro nos encontrou no telhado, disse que eu poderia entrar no meu apartamento para pegar o que precisasse. "Mas tem que ser muito rápido porque o prédio precisa ser evacuado."

a foto mostra clarice lispector, uma mulher branca de cabelos curtos e claros, segurando um buquê de flores finas rosas. ela é fotografada em frente a uma parede de plantas
A escritora Clarice Lispector, em agosto de 1969, na cidade do Rio de Janeiro - Acervo IMS/Divulgação

Em menos de um minuto, o tempo que fiquei no apartamento, peguei uma bolsa e coloquei nela um caderno de 360 folhas, as canetas gel que uso para escrever, meus óculos de grau e meu celular. Mais nada!

Quase desisti de enviar a minha coluna sobre o incêndio para a Folha, na semana passada. Estava com muito medo de expor publicamente um evento tão traumático, ainda muito abalada por ter ficado tão perto da morte. Pensei que me expor tanto poderia me deixar ainda mais frágil, angustiada e deprimida. Mas me lembrei da bronca do meu melhor amigo, Guedes, de 98 anos: "Tem que ter coragem, Mirian. Coragem, você vai sim".

Acabei enviando a coluna para a Folha e fiquei muito emocionada com as mensagens que recebi dos meus leitores e leitoras. Muitos disseram que choraram ou que ficaram com lágrimas nos olhos ao ler meu texto confessional.

Vocês não podem imaginar como foi importante receber tantas manifestações de solidariedade e carinho nesse momento tão traumático. É impossível registrar aqui todas as mensagens, mas quero compartilhar algumas que me deram a certeza de que não estou tão sozinha, vulnerável e desamparada.

A Fabiana Menezes escreveu: "Querida Mirian, que bom que você compartilhou essa história de cuidado e de zelo em meio a tanta notícia que vai na contramão".

O Vitor Luis: "Sou grato por compartilhar essa horrível experiência de sofrimento e angústia por não saber o que verá no minuto seguinte, até ter a sua mão segurada por um anjo".

O João Teixeira: "Mestra, fiquei e estou emocionado com os olhos lacrimejando. Não de tristeza, mas de alegria. Esse anjo foi enviado por Deus é claro!".

E o José Leandro: "À medida que eu lia esse texto, fui ficando, cada vez mais, com lágrimas no degrau a degrau".

Quantas vezes já tentei responder a uma pergunta hipotética: "O que você salvaria se sua casa estivesse pegando fogo?".

No dia em que quase morri intoxicada, em um momento de desespero e de pânico, eu descobri o significado do meu sonho. Não salvei dinheiro, joias, documentos, bens materiais. Salvei meu caderno e minhas canetas.

Escrever sempre foi, e sempre será, o propósito da minha vida. Como Clarice Lispector, escrevo para salvar a minha própria vida.

Afinal, "tem que zerar para encontrar o que você realmente quer".

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