Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo Todas

Escrevo para salvar a minha própria vida

Como Clarice Lispector, enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever

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"Por que você escreve?", me perguntou uma jovem leitora da Folha, de 16 anos, preocupada com seu futuro. Seu sonho é ser escritora, mas não sabe qual é o caminho que deve percorrer, qual é a faculdade que deve escolher, qual é o propósito da sua vida. Fiquei um tempão pensando como responder à jovem angustiada. De repente, no meio de uma noite de insônia, me veio à mente um ditado popular: "Deus escreve certo por linhas tortas".

Quantas coisas ruins que aconteceram na minha vida, que pareciam desastres ou tragédias, e que, com o tempo, percebi que foram importantíssimas para os caminhos que escolhi trilhar?

Começando com meus traumas de infância. Se não tivesse nascido em uma família tão violenta e tóxica, será que teria saído de casa aos 16 anos e construído a vida que eu queria tanto ter? Se eu tivesse tido uma vida amorosa e feliz na infância, será que eu teria me refugiado no mundo dos livros e encontrado na escrita meu jeito de sobreviver?

A escritora Clarice Lispector posa para foto
Como a escritora Clarice Lispector, escrevo para salvar a minha própria vida - Divulgação

Essas questões sempre voltam a me provocar. Como, "apesar" de toda a violência física, verbal e psicológica que sofri na infância, consegui sobreviver e encontrar um caminho de libertação e construir uma vida tão repleta de amor e propósito? Ou será que "por causa da" violência física, verbal e psicológica que sofri eu descobri que os livros e a escrita poderiam ser a minha salvação? Ou ainda: será que tudo o que me tornei foi "apesar de" e, paradoxalmente, também "por causa da" infância tão violenta, triste e miserável?

Foram tantas as linhas tortas, foram tantos os descaminhos, foram tantos os obstáculos, tantos os medos… Mas "apesar de", ou exatamente "por causa de" tudo o que vivi na minha infância, acabei encontrando, como uma formiguinha com pavor de ser esmagada, uma frestinha, uma saída, uma forma de sobreviver.

Aos 16 anos, comecei a escrever meus diários, hábito ou vício que me acompanha até hoje. Desde então, todos os dias, eu escrevo para mim mesma. Além de registrar cada detalhe do meu cotidiano, meus diários são o meu lugar de autoconhecimento, de acolhimento e de transformação. Em todos os momentos traumáticos da minha vida, em meio a um ambiente familiar de gritos, surras e brigas, escrever obsessivamente me trouxe alguma sensação de aconchego, proteção e segurança.

Escrever compulsivamente, obsessivamente, todos os dias da minha vida, desde os meus 16 anos, sem parar um dia sequer, foi e continua sendo a minha salvação.

Meus cadernos e minhas canetas fazem parte do meu corpo, são uma extensão da minha mão, da minha mente, do meu coração e da minha alma.

Escrever é um processo de libertação dos meus pensamentos e sentimentos mais profundos, inconscientes e desconhecidos, processo que me ajudou a descobrir meus limites e minhas potencialidades.

Escrever me deu a coragem necessária para enfrentar meus traumas, medos, problemas, angústias, ansiedades, inseguranças, culpas, preocupações.

Escrever me salvou da depressão, da impotência e do vazio existencial.

Escrever é a forma que encontrei para refletir sobre traumas e vergonhas que jamais conseguiria confessar nem mesmo às melhores amigas e terapeutas.

Escrever foi a minha forma de sair do armário escuro onde me escondi para não ser esmagada pelos demônios, monstros e fantasmas que me apavoram até hoje.

Escrever me ensinou como ser amada, escutada, reconhecida, cuidada e protegida de um mundo de extrema violência e crueldade.

Escrever me ajudou a conquistar meu lugar no mundo, meu trabalho, meu propósito de vida, meus amigos e meus amores.

Escrever não é o meu trabalho; escrever é minha verdade, minha essência, minha vocação, meu dom, o propósito da minha vida.

Escrever não é o que eu faço; escrever é o que eu sou.

Por fim, encontrei em Clarice Lispector a melhor resposta para a jovem e angustiada leitora de 16 anos.

"Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio... Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever... Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."

Por que escrevo? Escrevo para salvar a minha própria vida.

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