Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Descrição de chapéu Corpo Todas

Como transformar monstros assustadores em anti-heróis divertidos

Precisamos encontrar a melhor forma de conviver com nosso lado obscuro

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Em 2022, tive a alegria de fazer uma longa entrevista com a minha querida amiga Bruna Lombardi. Nela, Bruna revelou que gosta muito de uma parábola indígena do avô conversando com o neto.

O avô conta para o neto que dentro de cada um de nós existem dois lobos, um do bem e um do mal, e que eles estão constantemente brigando.

O neto pergunta: "E qual dos dois vence?".

O avô responde: "Aquele que você alimenta".

Bruna me fez refletir: "Qual é o lobo que eu alimento? O bom ou o mau?".

Na época, resolvi que só iria alimentar o lobo bom que existe dentro de mim e iria deixar o lobo mau ficar cada vez mais fraquinho e morrer de inanição. Como? Ignorando suas demandas excessivas e, quando possível, rindo das suas obsessões e perversidades. Acreditava que o melhor caminho seria desprezar completamente o lobo mau, pois, sentindo-se ignorado e rejeitado, ele iria procurar outras vítimas para atormentar.

No entanto, acabei de descobrir outro significado para a parábola. Em uma das nossas caminhadas na praia, meu marido, extremamente preocupado e estressado com problemas no trabalho, disse que tinha um "Venom" dentro dele.

Perguntei: "O que isso significa?"

Mostrando o aperto que sentia no peito, ele respondeu: "Estou me sentindo sufocado. Parece que tenho um monstro terrível dentro de mim, me corroendo, me consumindo, se alimentando das minhas entranhas. É uma agonia interna com os problemas normais do dia a dia. Quando consigo resolver um problema, aparece outro e logo depois outro. É como se fosse um ‘Venom’ que devora meu equilíbrio e minha paz de espírito".

Cena de filme
Cena do filme 'Venom: Tempo de Carnificina', dirigido por Andy Serkis - Divulgação

Para quem não sabe, "Venom" é um personagem de ficção científica das histórias em quadrinhos do Universo Marvel.

Meu ofício de pesquisadora não cessa nem no Carnaval, e, como fui obrigada a ficar de molho porque quebrei um dedo do pé, aproveitamos o feriado para rever os filmes "Venom", de 2018, e "Venom: Tempo de Carnificina", de 2021. Na verdade, não era mera curiosidade antropológica. Eu queria compreender o sofrimento do meu marido e achava que, revendo os filmes, ele iria encontrar um jeito de expulsar o "Venom" do seu coração.

O primeiro filme começa com a queda de uma aeronave vinda do espaço trazendo uma gosma alienígena que, em contato com um ser vivo, se transforma em um monstro com superpoderes. Ao entrar em um hospedeiro, o alienígena pode regenerar feridas abertas, ossos quebrados e curar doenças. A característica mais marcante de "Venom" é a mandíbula assustadora. Ele está sempre com muita fome e adora devorar cabeças de seres humanos.

O hospedeiro de "Venom" é Eddie Brock, interpretado pelo ator britânico Tom Hardy, um jornalista famoso por fazer denúncias contra empresas corruptas.

Eddie ganha superpoderes depois de ser infectado pelo alienígena cuja espécie planeja invadir a Terra. No início, o jornalista luta para se livrar do monstro assustador, mas logo percebe que precisa dos poderes de "Venom" para impedir que os alienígenas destruam a Terra.

A simbiose entre Eddie e "Venom" evolui com o tempo: eles vão se apegando e dependendo cada vez mais um do outro. O jornalista descobre que precisa escutar, interpretar, compreender e respeitar as necessidades, frustrações e desejos do alienígena para conseguir sobreviver e salvar o planeta.

As incessantes e divertidas conversas com "Venom", dentro da própria cabeça de Eddie, acabam convencendo o monstro a se tornar um aliado na luta para enfrentar os alienígenas do mal. E, assim, a dupla inusitada consegue salvar o planeta da destruição.

Eu e meu marido chegamos à seguinte conclusão: em vez de tentar ignorar, rejeitar ou matar o "Venom" que mora dentro de nós, precisamos encontrar a melhor forma de conviver com nosso lado obscuro, sombrio, raivoso, explosivo, agressivo, reativo, irracional, descontrolado, perverso, cruel, tóxico, sabotador, destrutivo. Foi libertador constatar que justamente aquele lado que temos vergonha de mostrar para os outros (e também para nós mesmos), pode ser, na verdade, nosso maior parceiro na luta contra monstros internos e externos.

Ou, voltando para a parábola da querida Bruna Lombardi, precisamos aprender a enxergar e compreender o lobo mau que quer devorar nossas entranhas. Paradoxalmente, ele pode ser a nossa salvação. Por isso, em vez de brigar com ele, precisamos descobrir maneiras de brincar com ele. Afinal, a simbiose do lobo mau com o lobo bom pode ajudar a transformar os conflitos em cooperação, além de revelar alguns dos superpoderes invisíveis que estão escondidos dentro de nós.

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