Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Descrição de chapéu Corpo Todas Estados Unidos

'Sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?'

Clarice Lispector ensina a enxergar beleza nos piores defeitos

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Em agosto de 2014, eu e meu marido começamos a namorar. Dias depois, ele viajou a trabalho para a Bahia e em seguida para Nova York. Para compensar a saudade insuportável, iniciamos um ritual que preservamos até hoje: todos os dias, antes de sair para trabalhar, ele me escreve cartinhas de amor.

Além disso, temos outros rituais. Ele me envia mensagens pelo WhatsApp durante o dia: "Boa sorte. Vai dar tudo certo. Vai ser tudo lindo"; "Tiamu, meu amor"; "Você é o amor da minha vida"; "Quéeeeeeee…"; "Minha princezinha mais linda do universo"; "Gostô"; "Ai amor, que pecado"; "Mozinho que eu amo"; "Muito bonitinha o meu amor" e por aí vai.

Mas nem tudo é sempre tão lindo e maravilhoso. Volta e meia um problema aparece e nem sempre temos a maturidade e o autocontrole necessários para resolvê-lo de um jeito equilibrado. Meu amor é explosivo; eu sou implosiva. Nossas brigas são bem desagradáveis: ele vomita a raiva para fora; eu engulo a mágoa para dentro.

Não grito nunca, fujo de conflitos e de brigas. Minha forma de me defender do "sofrimento absoluto" é ficar invisível, em silêncio, algumas horas e até mesmo dias. Foi assim que, no meu trabalho, ganhei a fama de ser "boazinha", "docinha" e "meiguinha". Outro dia uma colega me disse: "Nossa, que inveja. Como você é calminha, tranquilinha, não briga nunca. Fica no seu cantinho quietinha, só observando e escrevendo no meio dessa competição de egos de pavões exibidos e arrogantes que gritam, brigam e não têm a menor vergonha de se autoelogiar em reuniões intermináveis e insuportáveis".

Clarice Lispector (1920-1977) - Divulgação

A discussão mais recente com meu marido foi no fim do ano passado. Eu não havia dormido a noite inteira, angustiada com um problema no trabalho. Aí ele explodiu: "Você não relaxa nunca, no meio das nossas férias está preocupada com o trabalho? Não pode desligar um só segundo e curtir uma semana de descanso? Você se exige demais!", em um tom de voz que para mim é gritar e que para ele é absolutamente normal.

Fiquei dois dias em silêncio, distante dele, sem dirigir uma só palavra. Desde menina, quando me sinto ameaçada, me escondo dentro do armário com meu diário e só saio dele quando me sinto segura para voltar ao mundo real. Era assim que minha mãe reagia à brutal violência do meu pai. Foi assim que aprendi a me proteger da violência física, verbal e psicológica dentro da minha família: o silêncio, a invisibilidade e a escrita sempre foram as minhas armas mais poderosas.

Amo meu marido; adoro nossa vida: conversamos, rimos, brincamos, temos prazer em ficar juntos. Gostaria que fosse o tempo todo assim, mas, obviamente, isso é utópico. Em situações de muito estresse, como a que estamos enfrentando agora, nossos monstros internos ficam ainda mais poderosos.

Nós dois estamos aprendendo que só existe um jeito de superar os conflitos que inevitavelmente ocorrem: respeitar o monstro de cada um. Em vez de tentar ignorar, fugir ou gritar com os monstros que moram dentro de nós, descobrimos que é melhor cuidar deles com muito carinho, amor e bom humor. Na hora da crise, precisamos dar o tempo e o espaço que cada um precisa: ele precisa botar a raiva imediatamente para fora; eu preciso ruminar a mágoa durante horas e horas.

Como já contei aqui, meu marido deu o nome de "Venom" ao seu monstro explosivo. Estou convivendo cada vez melhor com o seu "Venom", que, apesar de ter mandíbulas assustadoras que destroçam cabeças, é muito brincalhão, carinhoso e apaixonado. Estou até conseguindo dar risadas das suas explosões exageradas e descontroladas.

Ainda não encontrei um nome para o meu monstro implosivo. Qual seria o melhor nome para um monstro que não relaxa nunca, que não dorme, que me atormenta com suas exigências de perfeição e que quer ser sempre o número 1? Um monstro que me faz ficar angustiada, ansiosa e deprimida com problemas que só existem na minha cabeça? Um monstro que tem o superpoder de ser silencioso e invisível, além de ter hipersensibilidade para saber a hora de escutar, observar, calar e escrever? E que prefere brincar em vez de brigar?

Quando mergulho em Clarice Lispector, aprendo que nossos monstros mais assustadores podem ser, na verdade, nossa salvação.

"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento… Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."

Afinal, "quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?".

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