Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo Todas

A arte de fazer a pergunta certa

Como afirmou Einstein, a formulação de um problema é mais essencial que sua solução

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Desde os meus quatro anos de idade eu já queria ser professora. Minha mãe me colocou na escolinha e minha brincadeira preferida já era ensinar. Hoje percebo que não era uma mera brincadeira: eu ensinei de verdade crianças e adultos que não sabiam ler e escrever.

Aos 16 anos, comecei a escrever meus diários, hábito ou vício que tenho até hoje. Passei a registrar, todos os dias, meus pensamentos e observações cotidianas. Nunca ninguém leu o que escrevi, nem eu mesma. Meus diários são para ser escritos, não para ser lidos.

Foi quando passei a sonhar em ser escritora, só que logo percebi que seria um sonho impossível de realizar. Afinal, quantos brasileiros conseguem pagar suas contas só escrevendo?

Por mais que eu amasse escrever, minha prioridade era ser uma mulher independente, pagar minhas contas, morar sozinha, construir uma vida totalmente diferente da vida infeliz e miserável que a minha mãe teve.

O físico alemão Albert Einstein mostra a língua em foto icônica
O físico alemão Albert Einstein (1879-1955) - AFP

Tive a sorte de ler "O Segundo Sexo" aos 16 anos, livro que abriu os caminhos da minha libertação. Simone de Beauvoir escreveu, em 1949, que a mulher independente —a mulher excepcional que luta pela sua autonomia econômica, social, psicológica e intelectual— estava apenas nascendo. E que as dificuldades são maiores para uma mulher livre porque ela escolheu a luta, não a resignação.

Para a filósofa existencialista, só com o trabalho a mulher poderia conquistar uma liberdade concreta, reconquistar sua transcendência e afirmar-se como sujeito. Ela deu como exemplo de liberdade o de uma mulher que lavava o piso de um saguão de hotel que dizia: "Nunca pedi nada a ninguém. Venci sozinha", mostrando-se tão orgulhosa "quanto um Rockefeller por se bastar a si mesma".

Imaginem a minha emoção e alegria quando, em 2019, fui convidada para escrever um texto para a edição comemorativa de 70 anos de "O Segundo Sexo", o livro que mudou a minha vida.

Será que se eu não tivesse lido "O Segundo Sexo" eu teria tido filhos e uma vida familiar mais convencional? Será que eu estaria casada até hoje com meu primeiro marido e feliz com os netinhos, como ele está? Será que eu teria escrito tantos livros e me tornado uma mulher independente financeiramente e realizada profissionalmente? Será?

Não sei como responder, mas tenho certeza de que o livro foi determinante para a minha trajetória. Até hoje, nos meus momentos de angústia, releio: "Não há, para a mulher, outra saída senão a de trabalhar pela sua libertação". Para tanto, deve "recusar os limites da sua situação e procurar abrir para si os caminhos do futuro; a resignação não passa de uma renúncia e de uma fuga".

Simone de Beauvoir alertava que seria muito difícil para as mulheres assumirem a condição de indivíduo autônomo e, concomitantemente, seu "destino feminino", pois "é mais confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se libertar".

Aos 21 anos, quando ingressei no mestrado, descobri a minha vocação de pesquisadora. Depois, fiz o doutorado em antropologia social, dois pós-doutorados e nunca mais parei de pesquisar.

No meu concurso para professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1997, precisei preparar dez pontos sobre métodos e técnicas da pesquisa qualitativa que transformei no livro "A Arte de Pesquisar: Como Fazer Pesquisa Qualitativa em Ciências Sociais", que está na 17º edição. Escrevi sobre a importância de aprender a formular a "pergunta certa" inspirada na frase de Einstein: "Frequentemente, a formulação de um problema é mais essencial que sua solução".

Em dezembro de 2024 irei concluir meu pós-doutorado em psicologia social, com foco na importância da autonomia, alegria e amizade na velhice, após a leitura de centenas de livros e teses sobre envelhecimento e felicidade, e a realização de uma pesquisa com mulheres e homens de mais de 60, 70, 80, 90 e até mesmo de cem anos.

Já estou sofrendo antecipadamente porque quero escrever um relatório de conclusão que seja realmente impactante, que mude a forma desrespeitosa e preconceituosa como filhos e netos tratam seus pais e avós, que transforme o olhar negativo e estereotipado que a sociedade construiu sobre os mais velhos.

Consegui realizar meus sonhos de infância e de adolescência: sou professora, pesquisadora, antropóloga e escritora. No entanto, até hoje, sofro do que chamo de "angústia de relevância". Apesar de apaixonada pela minha pesquisa, ainda não descobri "a arte de fazer a pergunta certa".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.