Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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O sucesso de negros incomoda no Brasil, diz Zezé Motta

Atriz e cantora narra as reações racistas do público quando ela formou casal com branco em novela

A atriz e cantora Zezé Motta posa para foto no hotel Ca'd'Oro, em São Paulo

A atriz e cantora Zezé Motta posa para foto no hotel Ca'd'Oro, em São Paulo Marlene Bergamo/Folhapress

João Carneiro

Zezé Motta, 74, chega apressada numa tarde de sexta a um hotel no centro de São Paulo. Está atrasada —o avião em que ela viajara do Rio de Janeiro, onde mora, teve que arremeter antes de pousar na cidade. 

 

Além de se arrumar e falar para esta entrevista, ela tem que almoçar, gravar um vídeo e, à noite, cantar no Jardim Paulistano, cerca de uma hora ao norte dali. No dia seguinte, se apresentaria em São Mateus, região periférica na zona leste.

 

O assessor que a acompanha de um lado para outro costumava dizer que 2017 era “o ano” de Zezé —a atriz e cantora foi enredo de uma escola de samba, ganhou homenagem da universidade Zumbi dos Palmares e um prêmio num festival de cinema.

 

Ele passou a reconsiderar a ideia quando Zezé, neste ano, recebeu tributos em uma exposição e no Festival Internacional de Mulheres no Cinema, em julho. Além disso, lançou seu sétimo álbum solo, “O Samba Mandou me Chamar”.

 

Depois de almoçar, a cantora embarca no elevador em direção à suíte. Veste um figurino sóbrio que lembra o de um músico de outra época: blazer e calça xadrez, de um marrom escuro, combinados com uma boina. Entra sozinha para o quarto e sai, cerca de 20 minutos depois, maquiada e vestindo uma bata multicor.

 

Pressionada pelo horário, senta-se e instrui o assessor: “Daqui a pouco vão começar a ligar pra gente. Explica pro Celso que já estou maquiada, só falta botar os cílios. E alguém testa o microfone pra mim!”. Em seguida, dirigindo-se ao repórter, sugere: “Vamos?”.

 

A conversa começa pela situação dos quilombos no Brasil. Antes de interpretar uma matriarca quilombola em “O Outro Lado do Paraíso” (2017), na Globo, Zezé havia visitado os antigos refúgios de escravos quando ocupou funções em órgãos de direitos humanos na gestão de Fernando Henrique Cardoso e, em 2009, no governo do Rio de Janeiro.

 

Nas primeiras experiências nos locais, sob o governo FHC, ela diz que viu quilombolas “muito cabisbaixos, quietinhos, calados, muito subservientes”. “Quando eu fui, já no governo Lula, da superintendência [de Igualdade Racial do Rio de Janeiro], já senti eles, sabe… com voz. Cobrando, denunciando.”

 

Zezé relembra também a vez em que ela, recebida com outros atores em um quilombo no Maranhão, percebeu como os quilombolas “não abrem mão da tradição”. Reunida para conversar com alguns deles e com hora para voltar à cidade, ela instou o jovem que recepcionava o grupo a começar o debate: “Vamos?”.

 

Mas o anfitrião recusou: “Não. Passo a palavra para o mais velho, porque aqui é assim que funciona”. “O senhorzinho de quase 90 anos fez uma introduçãozinha e depois passou a palavra para os outros. Fiquei muito emocionada”, conta ela.

 

“E a experiência nos quilombos ajudou a moldar sua visão política?”, pergunta o repórter. Zezé reage com uma longa risada, mal conseguindo completar as palavras: “Minha visão política-ha-ha-ha!”. 

 

(Ao longo de toda a entrevista, Zezé não para de sorrir e gargalhar.)

 

Recobrando o fôlego, ela esclarece: “De política não quero saber, não!”. E conta que já foi incentivada várias vezes a se candidatar a algum cargo. “As pessoas ficavam me cutucando. ‘Vai, Zezé, vai! Tenta como vereadora, deputada, com certeza você ganha!’ Não vou dizer o nome, mas fui sondada até para ser vice-prefeita no Rio de Janeiro”.

 

“Também fui sondada para ser ministra da Cultura”, continua, voltando a rir. “Foi assim: eu li no jornal que ia ser convidada. Estranhei, porque ninguém falou comigo. Aí um dia, ouvindo meus recados [na caixa postal], eu só ouvi umas vozes que falavam assim: ‘Porra, não é possível! Vocês só têm esse telefone da Zezé Motta? A gente tem que decidir isso hoje! Acha essa mulher, pelo amor de Deus! Seus incompetentes!’.”

 

A cantora prefere “não dar nome aos bois”. Mas a informação de que ela era cotada para assumir a área circulou na imprensa em 2016, no início da gestão do presidente Temer.

 

Zezé Motta se tornou conhecida ao estrelar o filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues, em 1976. Mas descobriu primeiro seu talento como cantora.

 

Ela aprendia músicas que escutava na rádio enquanto costurava com a mãe. E o pai, um músico de formação erudita que tinha uma banda de chorinho, se impressionava com a habilidade dela de dominar canções difíceis que havia ouvido poucas vezes.

 

Para ilustrar a história, Zezé canta uma música, movendo a mão para baixo e para cima para assinalar os tons graves e agudos que se alternam: “Não, eu não tenho culpa / De não ter um carinho para dar / Tudo que eu tenho é muita saudade / Saudade particular”.

 

Ela conta que acorda com a voz “no subsolo, muito grave”. “Faz uma confusão! De manhã, quando eu atendo o telefone, eles falam: ‘O sr. pode chamar a Zezé Motta?’”, diz, soltando mais uma gargalhada.

 

Chega a fotógrafa, e a cantora começa a completar o figurino, pedindo que o assessor traga as bijuterias e sapatos. “Ele que decide a minha vida!”, ri Zezé.

 

“Vamos?” Todos se encaminham para o terraço do hotel, onde a cantora se espraia em uma cadeira e continua a falar, ao mesmo tempo em que posa para as fotos.

 

O assunto volta a ser a questão racial no Brasil. Zezé diz acreditar que o sucesso de pessoas negras no país “incomoda”. “Porque, se você for perguntar pra uma pessoa humilde se ela sabe que vivemos num sistema racista, ela não vai ter essa consciência. Ela vai dizer: ‘Não, imagina! Minha patroa é um amor pra mim. Me dá umas coisas de presente, batizou minha filha.’”

 

“É claro que não são todos os brancos que são racistas. Eu até fico muito emocionada, quando participo de debates, de ver que isto mudou: antigamente, as discussões sobre racismo eram muito fechadas entre os negros”, continua ela. “Nós temos poucos brancos no Brasil”, diz, rindo, para emendar, séria: “Mas temos tido muitos brancos interessados em discutir o racismo no país”.

 

Quando participou da novela “Corpo a Corpo” (1984), da Globo, em que fez par romântico com Marcos Paulo, Zezé ficou “em choque” com a reação do público ao casal interracial. “Teve um senhor que disse [em uma pesquisa]: ‘Eu não acredito que o Marquinhos esteja precisando tanto de dinheiro pra estar passando por essa humilhação.’” 

 

“Um outro disse que, se a Globo o obrigasse a beijar uma ‘negra horrorosa’ como eu, ele lavaria a boca com água sanitária”, conta ela, e debocha do insulto, apontando para o próprio rosto: “Olha, tão bonitinha! Ha-ha-ha!”.

 

Zezé lamenta o caso, no início de junho, em que a cantora Fabiana Cozza renunciou ao papel de Dona Ivone Lara em um musical após críticas de que seria “branca demais” para a personagem, algumas delas vindas do movimento negro. “Fiquei muito triste. Até porque ela não foi discriminada por brancos, né?”.

 

“Uma vez fui criticada [pelo movimento negro] porque era casada com um homem branco. Falei: ‘Vem cá, nós não estamos aqui pra fazer campanha pela igualdade?’”, conta. “O ser humano é muito contraditório. Acho que em todos os segmentos tem umas cabeças estreitas, radicais.”

 

A cantora se levanta para uma nova bateria de fotos. Enquanto caminha, vai passeando por outros assuntos: o amor (“Já sofri muito, agora cansei”), as eleições deste ano (“Tá difícil, né?”) e os filhos (“Criei três meninas, um menino e três sobrinhas. Minha mãe fala que eu não bato bem da bola, não”).

 

Entre um tema e outro, ela canta, grava um vídeo para um festival de música e faz mais poses para a fotógrafa.

 

O tempo se esgota. E Zezé, já posicionada para os últimos cliques, volta a convidar: “Vamos?”.

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