Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Foi na cadeia que descobri que queria viver de música', diz Geraldo Azevedo

Preso na ditadura militar, o cantor diz que nunca teve envolvimento político e brinca sobre a fama: 'Não quero estourar. Quero ficar inteirinho'

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Geraldo Azevedo

Geraldo Azevedo Bruno Santos/Folhapress

São Paulo

Corria o ano de 1975 e a novela “Gabriela” era um dos principais sucessos da TV brasileira. Quando o personagem Mundinho Falcão, vivido pelo ator José Wilker, entrava em cena na tela, vinha a ordem em uma das prisões da ditadura militar do Rio de Janeiro: “Chama o artista para cantar!”. 

Preso, o cantor e compositor Geraldo Azevedo era, então, colocado em uma sala. Encapuzado e totalmente nu, o obrigavam a cantar a música “Caravana”, composta e cantada por ele e que era tema do personagem de Wilker. 

“Faziam uma roda de torturadores e começavam a dar porrada. Eles diziam: ‘Dança filho da puta. Dança!’”, lembra o músico pernambucano. “Foi muita humilhação e eu fiquei com muita vergonha. Você tem vergonha da humanidade.” 

“De um tempo para cá é que comecei a falar das minhas prisões. Tinha muita vergonha de tudo o que passei”, diz ele. O compositor afirma que nunca foi ligado a movimentos políticos e que todas as vezes que foi preso foi por arbitrariedade. “Depois descobriu-se que eu não tinha nada. Nunca tive envolvimento político tão sério assim. Meu envolvimento era com a cultura.”

Geraldinho, como é chamado pelos amigos, foi preso duas vezes durante a ditadura. A primeira, em 1969, durante o governo do general Artur da Costa e Silva, durou 40 dias e serviu para selar seu destino profissional. “Foi na cadeia que eu descobri que queria viver de música.”

Nascido na cidade de Petrolina, às margens do rio São Francisco, em Pernambuco, ele se mudou para o Recife para estudar. “Queria realizar o sonho de ser o primeiro formado da minha família, mas a música não deixou.” 

Sempre com o violão debaixo do braço, o que lhe rendeu problemas de coluna, Azevedo começou a tocar em bares da capital pernambucana. E foi assim que a cantora Eliana Pittman o conheceu. Ela se preparava para o primeiro show solo e convidou o músico para integrar a sua banda, no Rio.

“Ela ficou insistindo, mas eu não queria ir. Então, a Eliana mandou a passagem, meus amigos marcaram, compraram um enxovalzinho com três camisas e duas calças e disseram: ‘Você vai’. E eu fui.” 

Ao chegar ao Rio de Janeiro, ele passou a conviver com músicos como Milton Nascimento, Toninho Horta e Danilo Caymmi. “Aquilo foi me empolgando. Porque, vamos convir, tinham muitos mitos. Tinha o Danilo, que é irmão de Dori, que é o arranjador do disco de Edu Lobo. De repente, estava com os meus ídolos tão perto.”

Nesta época, Geraldo Vandré procurava músicos para sair em uma turnê. Ele havia acabado de conquistar a segunda colocação com a música “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” no Festival Internacional da Canção. 

“Aí eu formei o Quarteto Livre. Era eu, Naná Vasconcelos, Nelson Ângelo do Clube da Esquina e Franklin da Flauta. Ficamos com o Vandré um tempo, mas durou pouco. Logo veio o AI-5 [dezembro de 1968] e o Vandré começou a ser perseguido.”

Logo depois veio a primeira prisão. “Fiquei 20 dias numa solitária, com muitos interrogatórios violentos, mas teve um dia em que eu disse: ‘Vocês estão equivocados, estão me atribuindo coisas que não são verdade. Eu sou músico, não tenho nada a ver com isso’.” 

O compositor conta que, neste momento, trouxeram um violão para ele tocar. “O torturador era violento, de matar pessoas. Lembro que ele cheirava cocaína para torturar, mas ele se derreteu quando eu comecei a tocar. Ele tinha sensibilidade musical. No outro dia saí da solitária e fui para a cela coletiva. A música me salvou.” 

Até que chegou o dia do aniversário de um dos comandantes e ele deu a ordem: queria Geraldo tocando para ele. “Aí eu disse que não. Que só tocava se estivesse livre e que não sairia pra tocar em outro lugar.” Mas, por uma sorte do destino, o comandante desistiu do pedido e resolveu passar o aniversário com a família. 

No dia de sua liberdade, no entanto, não teve jeito. “Quando cheguei lá fora, me disseram: ‘Você não disse que só tocaria livre? Agora vai ter que tocar’. E eu toquei num almoço de militares na Ilha das Flores.”

Mesmo livre, ele diz que não conseguia deixar de pensar em um dos militares. “Tive ódio por muito tempo de um torturador. Pouco tempo depois, um produtor me sacaneou e eu também fiquei com ódio dele. Mas aí pensei: ‘Tô cheio de ódio. Não quero mais ter ódio de ninguém. Vou perdoar aquele torturador porque ele é que precisa de pena’.”

Da segunda vez que foi preso, em 1975, já no governo Geisel, ele traz mais do que a vergonha de ter que dançar e cantar pelado a música “Caravana”. 

Geraldinho carrega até hoje um nódulo na coluna. “Eu tava na parede de capuz e dei uma olhadinha de lado. O torturador gritou: ‘Olha pra frente!’ E bateu com muita força nas minhas costas. Na hora, a pancada me fez cair” 

“Um outro dia, fui colocado em uma sala de tortura com mais dois caras. Um deles eu consegui conhecer fora da prisão. Era Gildásio, que era cunhado do [cartunista] Henfil. Conheci só pelo nome, porque a gente era encapuzado. O outro cara sendo torturado chamava Armando Frutuoso e morreu ali na sala com a gente.” 

“Eu pensava que se eu não morresse e conseguisse sair daquela prisão, eu precisava ficar famoso. Não queria mais ser preso assim, sendo sequestrado da minha casa. Queria que acontecesse comigo como aconteceu com Chico Buarque que foi intimado porque era famoso.”

Ele diz acreditar que esse plano foi o que o ajudou a passar por tudo. “As pessoas iam me visitar e esperavam encontrar um derrotado, mas eu estava querendo acontecer.”

E aconteceu. Pouco tempo depois de sair da prisão, o músico foi contratado pela gravadora Som Livre e conseguiu seu lugar ao sol no showbizz. Até que, em 1985, decidiu romper com as gravadoras e administrar a sua carreira sozinho. 

“Sou muito crítico naquilo que eu faço e as gravadoras tinham um pouco de querer controlar o artista. Não sou brigão, mas por outro lado não vou contra meus ideais. Gravo só as músicas de que eu gosto.”

“Meu primeiro disco independente vendeu 100 mil cópias nos primeiros seis meses”, diz o compositor de sucessos que atravessaram gerações como “Bicho de 7 Cabeças”, “Dona da Minha Cabeça” e “Dia Branco”. 

Aos 74 anos, ele acaba de lançar um novo CD e um DVD. Sobre o Brasil atual, Azevedo afirma que o governo Bolsonaro já está parecido com o que era a ditadura. “Eu tenho medo dessas arbitrariedades feito AI-5, mas, ao mesmo tempo, acho que não vai acontecer. O Brasil tem outra estrutura emocional. Embora ainda tenham muitas pessoas que comemoraram o golpe de 1964, que é uma coisa nonsense.”

Ainda assim, ele segue a vida. “Bebo vinho toda noite. Às vezes, mudo para um camparizinho ou um gim. Ah, e também tinjo a minha barba”, diz ele antes de gargalhar. “Gosto de desenhar e ainda sonho em pintar. Meu sonho era tão grande que acabei pintando a minha barba. No cabelo eu também passo um negocinho às vezes. Mas eu faço tudo eu mesmo, detesto salão.”  

Ele admite que não se considera um bom empresário, mas está satisfeito com sua estrada. “Claro que existem limitações. Djavan falava assim: ‘Pô, Geraldinho. Você, da nossa geração, é o que nunca estourou, nunca explodiu. Vamos fazer uma música juntos para eu ajudar você. Mas eu respondia: “Djavan, fique quieto. Eu não quero nem estourar, nem explodir. Quero ficar inteirinho”, diz ele, e dá uma gargalhada.

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