Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Prostituição, para mim, foi a busca de um herói', diz Bruna Surfistinha

A história da ex-prostituta Raquel Pacheco foi imortalizada em livros, filme e série —que agora são censurados publicamente por Bolsonaro

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Retrato da ex-garota de programa Bruna Surfistinha

Retrato da ex-garota de programa Bruna Surfistinha Marlene Bargamo/Folhapress

O início daquela noite paulistana de julho era corriqueiro para a empresária Raquel Pacheco, 34, também conhecida como Bruna Surfistinha. 

Em casa, de frente para o espelho, ela se maquiava para um compromisso quando o celular vibrou ao seu lado. Sua assessora havia enviado uma mensagem com caráter de urgência. “Olha isso aqui agora!”, dizia o texto. 

Ela recebera um link de uma reportagem da Folha. Clicou para abrir.

‘Não posso admitir que façam filmes como o da Bruna Surfistinha’, diz Bolsonaro”, informava a manchete.

Lançado há oito anos nos cinemas, o filme retrata a história de Raquel como garota de programa. É baseado na biografia dela lançada em livro.

“Inicialmente, pensei que ele estava retrucando um tweet meu de meses atrás.” Em março, na rede social, ela havia postado: “Me chame de puta, mas não me chame de bolsominion, pelo amoooor de Deus!”. 

“Mas aí eu fui entender que, na verdade, era outra coisa.” 

Bolsonaro anunciava a intenção de transferir a sede da Ancine do Rio para Brasília e criticava a autorização de captação de recursos e o patrocínio federal a produções audiovisuais que, segundo ele, fazem “ativismo”.

“Ele estava fazendo referência à minha história de vida, sendo que ele não tem moral nenhuma para falar nem da minha vida nem da vida de ninguém”, diz Raquel.

Embora diga acompanhar o assunto “por cima porque dá raiva”, comenta as declarações de Bolsonaro como quem lê com atenção.

O presidente havia sugerido que a agência poderia falar de “tantos heróis”, mas que “a gente não fala nesses heróis no Brasil, não toca no assunto”.

“Então, assim, defina o que é herói”, rebate Raquel. “Defina o que é uma história que mereça ser contada. Todo mundo tem os seus podres. Não existe a história perfeita.”

“As pessoas têm um interesse muito grande na Bruna Surfistinha. É como se ela despertasse questões humanas”, acredita ela, que sempre se refere ao seu pseudônimo como prostituta na terceira pessoa.

A sequência do filme, contando a vida depois de largar a prostituição, está no papel. “Quero que saia o quanto antes para calar bocas. Não vamos contar com a Ancine. Mas vai ser questão de honra.”

A novidade pode ser a participação dela interpretando a si própria —no primeiro longa, o papel foi de Deborah Secco.

“Há uma chance aí”, afirma ela, que “gosta de estar na frente das câmeras”. Mas tudo ainda caminha no terreno das hipóteses.

“Sou dona de uma história que exige muito preparo [para ser interpretada].”

Ela relembra seu passado e revela planos futuros no pátio do terreiro de umbanda Casa de São Lázaro, na zona sul de SP, onde vai toda quarta e sexta.

“Na primeira vez que vim aqui, vi que tinham homossexuais, pobres, ricos, pessoas de todos os tipos. Não havia diferenciação. Eu, com todo o meu passado, fui acolhida.”

Ali, se sente à vontade para falar que lançará um canal no Youtube para falar sobre “tudo o que as pessoas esperam e não esperam da Bruna”. Diz que prepara voos mais altos para a “Bruna Sex Store”, sua loja de itens eróticos.

“Vou lançar dois produtinhos com meu nome, com a minha marca. São dois produtos que eu testei. Fui muito chata.”

Lançará, também neste ano, outro livro sobre o período enquanto era garota de programa. Será independente de qualquer editora.

“Meu plano é o seguinte: eu mesma vou vender, e a pessoa que comprar vai receber em casa o livro autografado. Vai ser tudo online. Uma edição limitada para quem realmente gosta de mim, me acompanha desde o início”, conta.

A ideia surge após lição que aprendeu há 13 anos, com a frustração pelo baixo número de cópias vendidas de sua segunda publicação, “O que aprendi com Bruna Surfistinha”. “Todo mundo tentava entender o motivo, aí fizeram uma pesquisa nas livrarias”, diz ela.

“Na capa, estava escrito ‘Por Raquel Pacheco’. Quase ninguém conhecia esse nome. As pessoas questionavam os vendedores: ‘Legal, mas quem é Raquel Pacheco?’”.

Ela nasceu em Sorocaba, convive com crises de ansiedade e TDA (transtorno de déficit de atenção) e é filha de uma mulher abusada sexualmente. Abandonada no hospital, nunca conheceu a família biológica.

“Meu inconsciente dizia que eu tinha que ser machucada de alguma forma, como minha mãe biológica foi.”

“Na prostituição, a mulher acaba se machucando emocional e fisicamente. Então, me dou conta que a prostituição, para mim, foi a busca de um herói, de um homem que pudesse me salvar de alguma maneira.”

Não conseguiu construir uma relação harmônica com quem a adotou. Fugiu de casa em 2002 para iniciar a vida como garota de programa.

“Quando meu pai morreu, em 2012, minha mãe falou que me procuraria depois que o luto dela passasse. Já faz sete anos e nada”, afirma.

Suas últimas tentativas de estabelecer contato ocorreram há dois anos. “Fui ao prédio onde ela mora por incentivo do meu ex-namorado. Pedi para o porteiro interfonar, e ele me passou o recado dela: ‘Avisa que eu não vou descer e pede para ela ir embora’.”

Duas semanas depois, Raquel ligou. “Aí ela foi muito clara. Disse que não tinha nenhum interesse nessa reaproximação porque eu havia feito uma opção. Falou para eu seguir minha vida”.

Há três meses, apanhou um caderno e uma caneta, sentou no sofá e escreveu “Plano de Vida” no topo de uma página em branco. 

Mal havia terminado um namoro de três anos e meio, que começou seis meses após o fim de um casamento de uma década

Dividiu a folha em duas colunas: em um lado, listou as metas para este ano. No outro, os objetivos a médio e longo prazo.

Em 2019, riscou da lista o desejo de ir pela primeira vez ao estádio em um jogo do Corinthians. Ainda falta parar para assistir a um pôr e a um nascer do sol e finalizar o Ensino Médio em um curso supletivo.

As metas de 2020 são percorrer sozinha o caminho de Santiago de Compostela, na Espanha –e engravidar até no máximo o mês de agosto.

“Já queria ter sido mãe, mas sempre fui adiando. Como eu quero ter dois filhos e estou para fazer 35 anos, tenho a preocupação da idade.” 

“Na minha experiência com meus pais adotivos, houve uma crise de geração muito grande. Não quero viver isso de novo”, diz.

Não busca um companheiro. Está nos seus planos ser mãe independente e aproveitar um tempo sozinha. 

“Vou dar amor suficiente para que meu filho não sinta a falta de um pai”, diz ela a amigas preocupadas que lhe avisam frequentemente: “Pensa bem, Raquel. Você sabe a dor de crescer sem um pai presente”.

“Ultimamente, vivo me questionando: o que eu quero da minha vida? Para eu ter paz, para viver bem, o que eu preciso?”, afirma.

“Quero viver a vida de uma maneira que não vivi ainda.”

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