Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Tem uma situação forjada, diz ex-executiva acusada de trabalho escravo em SP

Mariah Corazza diz que na verdade sempre tentou ajudar a funcionária

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No dia 25 de junho, já no auge da epidemia do novo coronavírus na cidade de São Paulo, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou em um sobrado no Alto de Pinheiros para verificar uma denúncia dramática: Neide Pereira da Silva, uma senhora de 61 anos, vivia em condição análoga à escravidão.

Os relatos impressionavam: Neide trabalhava há 22 anos para a família Corazza, sem registro, 13º ou férias.

Começou em 1998, prestando serviços domésticos para Sônia Corazza, conhecida consultora na indústria de produtos de beleza. Em 2011, a casa em que Neide morava desabou, e a patroa ofereceu abrigo a ela na residência da própria mãe, na mesma rua.

Anos depois, Sônia se mudou para Cotia. Na casa dela ficou a filha Mariah. Depois, a casa da mãe de Sônia, onde Neide morava, foi vendida.

Neide ficou sem teto outra vez. E foi viver no quartinho da residência agora ocupada por Mariah, para quem, segundo diz, passou a trabalhar.

Segundo ela, nem salário recebia mais —a não ser um valor irrisório, de R$ 300, que mal dava para comer.

O quartinho que ocupava era um depósito com cadeiras, estantes, caixas amontoadas, um sofá velho que servia de cama e sem banheiro. Para piorar, naquela semana os patrões se mudaram também para Cotia, sem avisá-la.

Em seu depoimento ao MPT, Neide disse que, enquanto viveu com Mariah, nem suco ofereciam a ela. Que tomava banho de canequinha pois do chuveiro a que tinha acesso só saía água fria. Que, depois da epidemia do coronavírus, foi impedida de entrar na casa principal e de ir ao banheiro. “Que urinava em um balde” e depois “jogava no ralo que ficava no fundo do jardim”.
Neide foi retirada do local pelas autoridades e está agora abrigada na casa de um vizinho da família Corazza.

O caso foi relevado em uma reportagem da Folha.

A ex-executiva da Avon em sua casa, em Cotia
A ex-executiva da Avon em sua casa, em Cotia - Marlene Bergamo/Folhapress

Aos 29 anos, Mariah Corazza foi demitida sumariamente da Avon, onde ganhava R$ 10 mil como gerente de produto. Responde a inquérito criminal e a um processo trabalhista cuja multa cobrada pode passar de R$ 1 milhão.

Nesta conversa, ela dá a sua versão da história. Nega que Neide trabalhasse em sua casa. Diz que ela só cuidava dos cachorros e que tentou ajudá-la como pôde.

NEIDE

Eu conheço a Neide desde que tenho 7 anos. Minha mãe tinha eu e minha irmã [Carolina] e trabalhava fora. Precisava de ajuda e a Neide começou a trabalhar como diarista, tanto para a minha mãe [Sônia] quanto para a minha avó, Nilde, que morava a nove casas da gente.
*
Eu conheço a Neide da vida inteira. Sempre foi uma pessoa em quem a gente confiava muito, uma pessoa querida na família.
Ela trabalhava para nós e para o bairro inteiro. Para a rua inteira. Cuidava dos cachorros de um monte de gente, levava para passear. Eu sei que naquela época cuidou de uma pessoa que tinha necessidades especiais.
*
Neste tempo, a Neide morava em uma casa alugada que dividia com várias amigas.
*
Em 2011, a minha família se mudou para Cotia. A casa da minha mãe em SP ficou comigo e com a minha irmã. E a casa da minha avó ficou vazia.
No comecinho de 2012, a casa em que a Neide vivia foi interditada pela defesa civil e ela ficou sem ter onde morar. A minha avó ficou penalizada. E ofereceu a casa dela, que estava desocupada, para a Neide. Deu a chave. A ideia é que fosse uma coisa temporária. Mas a Neide ficou morando lá por cinco anos, de 2012 a 2017. A minha avó nunca cobrou um centavo de aluguel, nada. Porque gostava muito dela e realmente queria ajudá-la.

O TRABALHO

Nesse meio tempo, eu fui fazer faculdade em Campinas e em 2014 voltei a morar em São Paulo, outra vez na casa que a minha mãe deixou para nós. Eu tinha dois cachorros. E, nesse período, eu pedia para a Neide cuidar deles, levar para passear.
*
Ela seguia vivendo na casa da minha avó, que estava vazia, e tinha também a chave e amplo acesso à minha casa. Sempre confiei, não tinha motivo para desconfiar dela.

O QUARTINHO

No finalzinho de 2016, a minha avó vendeu a casa dela. E a Neide teria que procurar, de novo, um lugar para morar.

A nossa casa é um sobrado e embaixo tinha um quartinho que já foi escritório, laboratório, depósito.

Acabei ficando com dó. E me solidarizei com a Neide. Conversei com ela e disse “tem o quartinho”.

Ofereci para ela colocar as coisas lá, pelo menos temporariamente. Ela aceitou prontamente.

Neste momento já morávamos na casa eu e meu marido, Dora [que veio da Turquia]. E ela continuou cuidando dos cachorros.

Na frente de casa tinha uma ocupação, uma habitação coletiva. Eu via a Neide lá. Imaginava que ela tinha um espaço lá em que dormia, fazia as coisas pessoais, deixando os pertences no quartinho da nossa casa.


Esporadicamente ela dormia no quartinho, em um sofá que era meu. Eu não queria questionar e fui deixando. Ela tinha livre acesso.

Ela diz que trabalhava na sua casa e ganhava só R$ 300.
Depois que deixou de ser diarista da minha mãe, a Neide nunca mais foi diarista na minha casa. O único serviço que prestou para mim foi cuidar dos cachorros. Eu pagava R$ 400, em duas vezes. Até onde eu sei, esse valor está dentro do razoável.

Eventualmente eu via que ela lavou uma louça, chegou até a passar uma camisa do meu marido para ajudá-lo. Sabe aquela coisa? Ela tá passando [na cozinha], viu que tinha uma louça, acabou lavando. Mas foi voluntário. Nunca foi pedido nada para ela.

Eu achava que era assim: poxa, já que eu estava ajudando ela, deixando ela morar lá, ela fez para me agradecer. Eu nunca pedi que fizesse. A única coisa que eu pedi foi para ela passear, cuidar dos cachorros, [serviço] pelo qual eu pagava.

Por que depois da epidemia ela não tinha acesso ao banheiro? Ela diz que fazia tudo em um balde.
Na minha casa tinha um banheiro na lavanderia. Nunca vi ela usando. Mas ela tinha a chave. Poderia ter usado. Não tinha por que fazer as necessidades em um balde. Então me parece que essa é uma história um pouco forjada, um pouco manipulada.

Ela diz também que trabalhou anteriormente de segunda a sexta para a sua mãe, e que nunca foi registrada. 
Ela não tinha um trabalho formal, de segunda a sexta.

É o que ela diz. 
É o que ela diz mas eu acho que ela esta sendo manipulada. Porque ela sempre foi diarista. Não era obrigatório que diarista fosse registrada.

Como se chegou a isso? 
A gente ainda não conseguiu descobrir o que aconteceu. O que eu sei é que tudo foi fruto de uma denúncia anônima e que tem uma situação mentirosa aí. No meu depoimento [às autoridades], eu conto que um dia a Neide chegou machucada em casa. Eu e meu marido perguntamos o que houve e ela não quis contar. Eu não sei se tem alguém agredindo ela. Tem uma situação forjada aí, talvez visando um ganho financeiro. Não sei.

Ela diz que se machucou porque caiu de uma escada no seu quintal e que vocês sequer a ajudaram. Ela retrata vocês de uma forma muito... 
Muito ruim.

Diz que gritou a noite toda e que vocês ignoraram. 

Se ela tivesse caído, a gente teria ouvido. E o lugar de onde a Neide diz que caiu é muito alto. É um piso áspero. De verdade: ela teria morrido. Acho que é mentira. Ela teria me falado. Não me disse nada. Ofereci levá-la ao médico, ofereci remédio. Mas ela não quis.

A Neide nitidamente era uma pessoa que passava por dificuldades. Você diz que ajudou colocando ela em um quartinho. Mas nunca houve a ideia de dar uma ajuda maior, um acolhimento maior? 

Eu ajudei ela com o que eu tinha. Com o que estava ao meu alcance. Diferentemente do que está escrito na mídia, eu não era uma alta executiva [da Avon]. Eu estava do começo para o meio da minha carreira. Eu até tentei ajudar a encontrar um irmão dela, mas não tive sucesso. Procurei ajuda jurídica na Avon para tentar conseguir o benefício da Loas [Lei Orgânica da Assistência Social] para ela, e não deu certo. Eu ajudei dentro das minhas possibilidades.

Você nunca achou que a situação de uma pessoa morando em sua casa, eventualmente prestando serviços, traria problemas? Reconhece algum erro na relação trabalhista? 

Eu até sabia que eventualmente ela poderia falar que trabalhava para mim. Tanto é que cheguei a buscar orientação na Avon. Mas o que eu achava?

Como eu conhecia a Neide há 22 anos, [achava que] nunca ela iria chegar e falar “ah, eu trabalhei para ela e ela nunca me pagou”. Poxa, eu confiava nela, né? Tudo o que eu tinha, ela tinha acesso.

Eu paguei pelo que eu pedi para ela fazer para mim, que era cuidar dos cachorros. Não acho que paguei menos do que deveria, nada assim.

A gente sempre teve uma relação amigável, cordial. No final do ano, em datas comemorativas, eu sempre dava um presentinho pra ela, uma lembrancinha.

Eu nunca tive nenhum tipo de atrito com ela. A gente teve duas discussões. Sobre o coronavírus [o casal diz que insistia para Neide usar máscaras e não sair tanto de casa] e sobre ela medicar os meus cachorros. Mas não foram brigas super tensas, nada assim. Foi uma discussão, como acontece em qualquer relação.

Não tem algo que acha que poderia ter feito diferente? Algum equívoco? 
Com certeza. Se pudesse voltar atrás, eu teria feito um contrato de comodato, algum tipo de formalização para colocar no papel o que efetivamente aconteceu. Que foi: eu cedi um espaço na minha casa para ela guardar os pertences. Ela, sim, prestou serviços para mim, cuidou dos meus cachorros. Mas nunca fez um serviço doméstico.

A POLÍCIA

Claro que me assustei [quando a polícia chegou em Cotia e intimou ela e a família para irem a SP]. Foi horrível. A gente chegou por volta das 11h [na casa em SP onde Neide estava]. A polícia estava tomando depoimentos lá dentro. A minha mãe queria entrar. Não deixaram. Ficamos em um corredor externo, sentadas no chão, até as 17h, quando prestei depoimento.

Foi super turbulento. Me pressionaram muito. A promotora dizia “eu vou pegar tudo o que você tem”. Eu fiquei muito chocada. Nunca passei por isso na vida. Na boa, eu não tenho uma multa de trânsito. E aí vêm falar que submeti uma pessoa à condição análoga a de escravo.

A DEMISSÃO

Meu primeiro pensamento foi tirar o Linkedin para não ligarem meu nome à empresa [Avon, onde trabalhava há três anos]. Tentei proteger a empresa, mas ela não se preocupou comigo. Publicaram no Instagram que fui demitida, e isso deu margem para mais ataques. Não deixaram eu contar o meu lado. E me expuseram. Assim, na boa, quem vai me empregar hoje?

O FUTURO

Primeiro, preciso mudar a minha imagem. Se eu fizer um processo seletivo, ninguém vai me contratar. Se abrir empresa, ninguém vai comprar meu produto. Eu, sinceramente, não sei [o que vai acontecer daqui para a frente].

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