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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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É preciso sair do Brasil para viver o balé dignamente, diz brasileira estrela do Royal Ballet de Londres

Aos 27 anos, Mayara Magri debuta como a bailarina principal do balé da Royal Opera House, em Londres, e estreia um dos papéis mais aspirados por qualquer profissional de seu segmento: o de Odile/Odete, em 'O Lago dos Cisnes'

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    A bailarina brasileira Mayara Magri em 'O Lago dos Cisnes', de Tchaikovski, na Royal Opera House, em Londres

A bailarina brasileira Mayara Magri em 'O Lago dos Cisnes', de Tchaikovski, na Royal Opera House, em Londres Andre Uspenski/Royal Opera House/Divulgação

James Cimino

Jornalista e mestrando em International Affairs pelo King’s College, trabalha na Royal Opera House como guia turístico multilíngue e usher (profissional que organiza e dá informações à plateia antes do início das apresentações)

Quem visita o famoso distrito de Covent Garden, no centro de Londres, não deixa de notar uma estrutura de formato espiralado que atravessa a Floral Street. Projetada pelo arquiteto Wilkinson Eyre, ela conecta a escola do Royal Ballet ao imponente edifício da Royal Opera House (ROH), um dos teatros mais tradicionais do West End, referência em balé clássico e ópera.

Conhecida como ponte da aspiração, é chamada pelos bailarinos da escola de "ponte da transpiração", pois, em média, apenas 2% dos alunos conseguem atravessá-la para se incorporar profissionalmente à companhia de ballet da Royal. Dentre as felizardas que já fizeram a travessia estão Dame Darcey Bussell e a argentina Marianela Nuñez, uma das mais —se não a mais celebrada— bailarina contemporânea que, junto à russa Natalia Osipova, atrai multidões para suas performances na ROH.

Dez anos atrás, no entanto, uma brasileira também cruzou a ponte: Mayara Magri, que nessa última sexta estreou um dos papeis mais aspirados por qualquer bailarina: Odile/Odete em "O Lago dos Cisnes", de Tchaikovski.

A bailarina brasileira Mayara Magri posa na ponte que conecta a escola do Royal Ballet ao edifício da Royal Opera House, em Londres - Andre Uspenski/Royal Opera House/Divulgação

Homônima da atriz que fez fama nas novelas de TV dos anos 1980, essa carioca de 27 anos, filha de um taxista e de uma dona de casa que tardiamente se formou em administração de empresas, foi promovida a principal em maio, quando o teatro ainda não tinha reaberto devido às restrições da pandemia de Covid-19. A promoção deveria ter ocorrido em 2020, mas foi adiada pelo mesmo motivo.

Na época, Mayara conta, o diretor do balé, Kevin O’Hare, disse a ela que seria quase impossível financeiramente para a companhia arcar com os custos de mais uma principal. Ainda assim, decidiu apostar na brasileira mesmo antes de o Reino Unido ter certeza de que o lockdown que terminara em abril seria o último. E sem saber se o teatro poderia, finalmente, voltar à ativa.

Questionado pela coluna o que o teria feito correr esse risco, O’Hare se limitou a dizer, via email, que "Mayara é uma artista maravilhosa que tem sido um membro chave da Companhia e realmente merece sua promoção". Sobre o que a brasileira tem que a distingue dos outros principais, o diretor respondeu que "Mayara tem uma personalidade única aliada a uma forte técnica que imediatamente se conecta com o público".

A bailarina brasileira Mayara Magri em "O Lago dos Cisnes", na Royal Opera House, em Londres - Andre Uspenski/Royal Opera House/Divulgação

A técnica de Mayara veio do que no Brasil a gente classificaria com a metáfora do "chão de fábrica". Ela começou a estudar balé na escola particular Petite Dance, na Tijuca, com bolsa de estudos integral obtida através de um projeto social chamado "Dançar a Vida". Começou aos oito e ficou lá por mais oito anos. Em 2011, aos 16, foi a primeira brasileira a ganhar o Prix de Lausanne em duas categorias. A medalha de ouro deu a ela uma bolsa de estudos na escola do Royal Ballet, onde ficou apenas um ano. O segundo prêmio foi de "favorita do público".

Embora tenha ficado apenas um ano na escola do Royal Ballet, Mayara conta que isso foi suficiente para ela receber o "selo de qualidade". "Acho tão engraçado que internamente eles dizem ‘ela veio da escola do Royal Ballet’. E eu falo: ‘Calma, gente, eu estudei um ano apenas com vocês’." Obviamente não há nenhum tom de ingratidão em sua cautela, mas um senso de reconhecimento e gratidão a tudo o que adquiriu dançando no Brasil.

"O que diferencia a gente do balé inglês, por exemplo, é que no Brasil eles colocam as crianças no palco tão jovens...", diz. "As crianças inglesas que fazem balé nunca estão no palco. Já nós dançamos em lona cultural, piso de concreto, escola pública. A nossa professora na Petite Dance vivia incentivando a gente a ir dançar nesses lugares. ‘Vamos dançar no shopping!’. E você perde aquele medo de estar no palco, ganhando ao mesmo tempo experiência e confiança."

Ser promovida a principal na Royal Opera House significa muitas coisas. Uma delas é dançar para uma plateia que recebe a nobreza inglesa, real ou decadente, artistas como Tracey Ullman, a ex-premiê britânica Thereza May e até popstars como Justin Bieber, que apareceu em janeiro para ver "O Quebra-Nozes" e que teria saído ao fim do primeiro ato porque, segundo rumores, teria achado o elenco "branco demais".

Ela também passou a integrar o seleto time de 16 bailarinos que só interpretam os papéis principais nas produções do Royal Ballet e que podem se dar ao luxo de, por exemplo, não dançar papéis secundários, como os destinados aos solistas.

"O solista é o segundo papel mais importante de qualquer balé, como a Rainha das Willis, em ‘Giselle’, por exemplo. Nos primeiros anos como principal você ainda pode fazer esses papéis se você quiser. Eu sempre peço para fazer porque eu gosto de estar no palco. Senão eu iria aparecer a cada um ou dois meses. Prefiro fazer algo para me manter em forma e estar no palco sem tanta pressão de carregar o balé, sabe? Além do que, o solista às vezes rouba a cena."

Seu "debut" como principal deveria ter acontecido na semana do Natal de 2021, no papel da Fada Açucarada em outro balé de Tchaikovski, "O Quebra-Nozes". Mas a variante ômicron atrasou tudo. A ROH fechou por duas semanas e a estreia aconteceu apenas em janeiro, durante a última performance da temporada.

Foi uma apresentação complicada. O sistema de troca de cenários projetado pela Rolls Royce, que permite que a ROH possa ter diferentes espetáculos no mesmo palco, no mesmo dia estava com problemas. E a cena mais espetacular do balé, quando o personagem Grosselmeister encolhe os personagens e a árvore de Natal "cresce" no palco, não aconteceu.

Uma das bailarinas caiu, o solista do segmento "Arabian Nights" quase perdeu o equilíbrio nas duas vezes em que teve de carregar sua parceira suspensa acima da cabeça, e Mayara terminou um solo de várias piruetas um segundo antes da orquestra. "Na verdade, o que aconteceu foi que o maestro terminou a música alguns segundos antes e veio me pedir desculpas depois. Porque são eles que acompanham a gente, não o contrário."

Depois da Fada Açucarada, Mayara também fez sua estreia em "Romeu e Julieta", de Sergei Prokofiev, em que ela dançou como Julieta, enquanto seu parceiro na realidade, o bailarino Matthew Ball, foi um dos principais que interpretaram Romeu. Juntos há quatro anos, eles acabam de se mudar para o apartamento que compraram juntos no norte de Londres, mas evitam dividir o palco.

"A gente sobreviveu bem durante a pandemia, porque a gente era parte da bolha um do outro treinando da cozinha de casa, fazendo exercícios no parque. Mas eu prefiro evitar de levar essa convivência para o palco, porque quando você está em um relacionamento você fica muito sincero com outro. Você fala da maneira que é, e às vezes não é muito legal trabalhar com alguém assim."

A bailarina brasileira Mayara Magri em “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovski, na Royal Opera House, em Londres - Andre Uspenski/Royal Opera House/Divulgação

Como se pode perceber, Mayara é muito sincera, centrada, focada, e sabe de onde veio. Por isso que, ao falar de outra grande mudança que a promoção a principal lhe deu, não deixa de analisar seu trabalho sob um viés político também. Embora não cite cifras, Mayara explica que o aumento de salário que recebeu como principal lhe permite, por exemplo, pagar um plano de saúde para os pais no Brasil. E lamenta o descaso dos políticos brasileiros com as artes e os programas sociais voltados a esse mercado.

"Aqui, a carreira de bailarina é realmente uma profissão em tempo integral. O salário dá para viver e dá para viver bem. Minha irmã, que é cinco anos mais velha e fez engenharia no Brasil, por exemplo, não ganha o tanto que eu ganho, mesmo fazendo a conversão. Mas, claro, eu vou parar de trabalhar muito mais cedo que ela também porque eu comecei a trabalhar aos 17 anos. No Brasil eu sou rica. Aqui eu sou classe média. Mas o que é mais triste é saber que a gente tem que sair da nossa própria terra para conseguir viver dignamente nesta profissão. Especialmente tendo bailarinos incríveis, criativos, que dançam pelo amor à arte mesmo."​​

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