Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

O retorno ao pior

Um autocrata maluco pode ser o "divino" escolhido

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Dias atrás, a verve sempre elegante de um colunista nos fazia lembrar o alienista (machadiano) Simão Bacamarte e o deposto dom Pedro 2°, que partiu reclamando dos doidos: "Ambos sabiam que, de tempos em tempos, os malucos dão as cartas" (Elio Gaspari).

O senso comum identifica as louquices públicas dos mandatários por despropósitos de linguagem ou por desequilíbrio de ações. Ilogismo é o termo extensivo para o fenômeno. Reponta aqui e ali na insanidade, senão em distopias literárias, como "1984", de George Orwell. Para registro, as três divisas do seu Ministério da Verdade: guerra é paz, escravidão é liberdade e ignorância é força. Esta última é oportuna, fala de coisa que atravessa os tempos.

O ator John Hurt em cena do filme "1984", baseado na obra de George Orwell - Divulgação

Na Antiguidade, temia-se tanto a ignorância (agnoia) a ponto de representá-la como uma das Fúrias, um ser infernal. A falta de conhecimento de si mesmo, dos objetos imediatos ou dos modos de fazer sempre foi causa de perdição do homem aos olhos dos deuses e dos comuns. Ignorar é não ver o real. Na Bíblia, o ignaro é um cão que retorna ao próprio vômito (Provérbios, 26.11).

Mas como pode ser força? São Tomás de Aquino deu uma pista ao falar de "ignorantia affectata", quer dizer, ignorância intencional, respaldada por motivações sombrias. Faz fronteira com o extremismo e a loucura, daí o potencial destrutivo da servidão que desconhece a própria cegueira.

Basta lembrar o Irã do xá Reza Pahlevi, moderno apenas para as castas escolarizadas. Por fora, dezenas de milhões de pessoas que não sabiam ler nem escrever, mas eram o Povo do Livro, nome piedoso para a obediência cega ao Corão.

O império do xá caiu como um castelo de cartas. É que a força da ignorância marca o ponto regressivo de uma modernidade indiferente ao desamparo dos danados da Terra. Um autocrata maluco pode ser o "divino" escolhido para o contato emocional com seus fiéis ignaros. Ou com letrados perversos.

Em detrimento da educação, sustentáculo de toda democracia, emergem formas de vida desvairadas, em que a ciência é confundida com Satã e vacina com falta de liberdade. Horrível de dizer, mas Orwell acertou.

A ignorância tem força transitiva na alucinação política, que é a modernidade enforcada. Disso o paradigma ocidental é certamente o nazismo, com suas variáveis persistentes nas ditaduras do Oriente Médio. Mas não temos de olhar para muito longe: a quase divinização de Donald Trump na maior potência do planeta tem semelhanças de família com a lógica do pior.

No zero dos valores, os cães podem retornar, sim, ao vômito.

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