Talvez a primeira coisa a se dizer sobre o aceso movimento descolonial de derrubar estátuas é que parece uma historiografia sem palavras, feita de baixo para cima. A história como se conhece é sempre o relato escrito de um testemunho autorizado (hystor) por cima. A humanidade revela-se graficamente. O que vem antes é pré-história.
Vale o que está escrito, portanto: as representações de um passado editado por quem manda. Essa é a história que legitima o poder. Por isso, Nietzsche criticou a “história monumental” e o historicismo acadêmico como doenças da interpretação. Em primeiro plano deveria estar o fato de se ter vivido algo para entendê-lo.
Mas como proceder quando se trata do tempo remoto? Uma hipótese viável é a da ancestralidade, ou seja, a continuidade das vozes dos pais fundadores de um grupo. Nada de antiquado, pode ser uma experiência contemporânea e cosmopolita, como o culto elitista aos “founding fathers” nos EUA. Para outros, um modo comunitário de compreensão, em que os feitos humanos se articulam pela celebração consensual dos predecessores relevantes.
Ancestral não é o mesmo que o remoto “herói” das glórias exclusivas do Estado, a exemplo de capitães do mato e exterminadores de indígenas. Esses são apenas milicianos da história. A ancestralidade faz ressoar, na consciência afetada por um destino comum, as vozes dos guias consensualmente ilustres. O que importa é a narrativa de uma experiência existencial compartilhada na memória coletiva.
Tampouco é um tempo exclusivo dos povos ditos “tradicionais”, e pode estender-se à diversidade humana em um território nacional. Disso é sugestiva a estátua do Cristo Redentor, a mais famosa do mundo, que agora completa 90 anos. Conta-se que, muito antes, tinha sido sugerida a construção no Corcovado de um monumento à Princesa Isabel, dita Redentora, que teria respondido: “Façam ao Cristo!”.
O resultado agrega a nação como uma vivida comunidade afetiva. E é precisamente a distância entre o monumental e a vida concreta que está na raiz do ativismo para a derrubada de estátuas de próceres colonialistas e traficantes de escravos, desde o famigerado rei belga Leopoldo até vultos públicos no Reino Unido e nos Estados Unidos.
Desenha-se assim o front de uma contenda simbólica em torno de monumentos. De um lado, a escrita histórica da razão dominante. De outro, a contra-historiografia atuada, uma estratégia do afeto ancestral como forma dinâmica de poder, avessa à ideologia colonial. Ao fundo, a suspeita de que “a História é um pesadelo do qual estou tentando acordar” (James Joyce).
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