Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

O crime perfeito

Frase de Trump evidenciou a diferença entre a lei e a regra

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"Eu poderia ficar parado na Quinta Avenida, atirar em alguém e ainda assim não perderia um eleitor."
Essa frase recente de Donald Trump, perdida em meio à sua verborragia incivil, pode ser tomada como sinal forte da neobarbárie americana. Isso existe em larga escala e comprova-se em qualquer exame da cultura dos "rednecks" ou dos grupos de terrorismo interno. Mas a frase tem conotações que se irradiam para além dos EUA, quando se presta atenção às entranhas do neofascismo emergente em outras partes do mundo.

O teor cru e grosseiro da afirmação esconde uma artimanha de sentido: ele não está dizendo que deixaria de ser preso ou eventualmente condenado, e sim que nenhum de seus eleitores se incomodaria com o crime.

O ex-presidente Donald Trump - Andrew Kelly/Reuters

De fato, num país de leis realmente aplicáveis, como é o caso dos Estados Unidos, ninguém escapa às mãos lavadas do arcabouço legal: ex-presidente ou não, ele seria arrastado aos tribunais. Ele afirma, porém, que fora do escopo formal da República, mas ainda na prática cotidiana da democracia, um assassinato aleatório daqueles seria assimilado por seus seguidores.

Emerge assim um tópico da alta reflexão, que é a diferença entre a lei e a regra. Lei é uma forma abstrata ou vazia, mas independente de seus conteúdos, de sua letra, ela envolve e coage o cidadão. É o que mostra "O Processo", de Kafka: o protagonista, intimado e condenado por um crime que desconhece, cai absurdamente na trama legal. No limite, é indiferente conhecer ou desconhecer a lei, já que o imperativo é a obediência à forma.

A regra, ao contrário, é familiar aos parceiros do jogo social (como, aliás, em qualquer jogo) e sua eficácia depende do reconhecimento comum. A lei proíbe matar, mas isso só funciona quando corroborado pela regra comunitária.

A frase de Trump implica uma supressão da regra em que se apoia na vida concreta o respeito aos princípios humanos. Claro, isso pode estar nas leis, mas sua prática depende de uma educação, ao mesmo tempo privada e pública, capaz de levar a um consenso positivo. A afirmação de um ex-dirigente nacional é perturbadora porque pode ser verdadeira: o fascismo, seja o antigo ou o emergente, traz no bojo a violação continuada (legal, moral, humana) do comum.

Isso pode lançar alguma luz sobre o fato obscuro de que, em outros países, personagens similares comunguem do espírito daquela frase, isto é, da aderência psíquica e política à violência impune. A arma e o gozo do assassinato constituem o móvel da busca de uma regra à margem da lei.

Afinal, o sonho de todo e qualquer fascismo é o crime perfeito.

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