Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Em campo tóxico

Com ignorância e delinquência política, o corpo da democracia no país permanece vulnerável

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Confirmada a vitória do rito democrático, ressoam frases aliviadas de "retorno à normalidade". Mas pode ser muito enganoso um terreno social minado pela "hungranização" incubada, estilo Viktor Orbán, ou seja, a modalidade de golpe de Estado sem tanques, com aparências normais. Sobre isso, aliás, a ornitologia tem algo a dizer.

Protesto antidemocrático de bolsonaristas em frente ao Comando Militar do Sudeste, no Ibirapuera, contra a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - Mathilde Missioneiro - 3.nov.22/Folhapress

Em pauta, um exótico falcão, conhecido como picanço ou pássaro-açougueiro, que não possui garras e, ainda por cima, canta. Igual aos demais, caça aves de menor porte. Só que em vez de matar na hora, espeta-as em espinheiros, arames farpados ou objetos pontiagudos, voltando depois para dilacerar e comer. A natureza autorregula-se: essa rapineira dispensa unhas afiadas porque mata de modo indireto, ecologicamente, por capilaridade de meios.

Assim também é possível figurar o tipo de golpe que, no silêncio comprometido das guardas pretorianas, lança mão de um meio ambiente favorável ao fluxo veloz de estímulos corrosivos do caráter e à anemia da civilidade. Tudo que troque a substância política pela aparência pode servir de ferramenta para prostrar a vitalidade da cidadania. Substanciais são as instituições educativas (escola, família, associações civis, imprensa livre), onde a democracia é concreta. Senão, o que se tem é o sepulcro caiado da história viva.

As redes sociais têm sido a pá de cal com que a ultradireita mascara a realidade. Moderno certamente é o fenômeno da capilaridade digital, base para que o ecossistema de algoritmos se imponha como solo real na sociedade da informação. O problema é que, por manipulação, as redes vistam aparências de realidade última, distorçam modos de apreensão do mundo e empacotem fatos.

Isso já ocorria na velha mídia, em outra escala. Agora, porém, cada um é manipulador de si mesmo, como efeito da individualização digitalizada dos estímulos. No vaivém das aparências, uma coisa é ela mesma e seu contrário, assim como o falcão que canta para matar.

O socioambiente está posto em risco. Como um campo minado pelo veneno da antidemocracia, o golpe se faz autoaplicado e permanente. Corre perigo a coexistência civil em meio a instituições fragilizadas e à mentira capilarizada em rede como certeza paranoica de que o inimigo é a diversidade.

Mas a atmosfera tóxica deprime espíritos, exaure o ânimo da nação. Por isso, votos contados, é um alívio respirar, como canta uma voz nordestina, "na bruma leve das paixões que vêm de dentro". É hora de reconstrução pessoal, obrigatoriamente a mesma de uma vigilância institucional continuada: espetado na ignorância dos fatos e na delinquência política, o corpo da democracia permanece vulnerável à dilaceração por aprendizes vorazes dos pássaros-açougueiros.

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