Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

O sétimo círculo do inferno

Entre nós, uma política preventiva deveria começar desmistificando a imagem romantizada do país

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Nada é mais perigoso do que uma ideia quando não se tem outras. Isso soa clichê, mas resume à perfeição o programa de governo atual: a ideia fixa da violência armada. Para essa questão social, potencializada pela triplicação da posse de armas no país, é fraquíssima a oposição do discurso progressista. Talvez porque seja fraca a percepção democrática da diferença entre força e violência. Vale uma mirada etimológica: a origem da palavra ("vis") traduz as duas noções.

Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato. É disruptiva tanto coletivamente, em caso de guerra, quanto individualmente, como anomia. Na Divina Comédia, Dante reserva aos violentos o vale do Flegetonte, o sétimo círculo do inferno. A modernidade tenta proteger-se com o monopólio estatal do fenômeno.

duas pessoas enfrentadas, uma delas cabisbaixa e a outra aponta o dedo indicador com cara de raiva. A ilustração tem o fundo com redemoinhos pretos rabiscados
Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato - Artsgraphiques.net - stock.adobe

Mas os cidadãos temem primeiro os atos e não o pouco visível estado de violência, por mais que uma sociedade estruturalmente desigual esteja sempre afeta a atos de anomia. De fato, a iniquidade econômica e política dá sempre margem a ciclos expansivos da violência.

Entre nós, uma política preventiva deveria começar desmistificando a imagem romantizada do país. O escravismo e o patriarcalismo adestraram as elites na negação das diferenças pelo extermínio puro e simples. Atávicos nas formas coletivas de consciência, esses fenômenos fossilizados respondem até hoje pela naturalização de práticas violentas contra a gente mais pobre.

Individualmente, violência ou desmedida da força é o ovo da serpente entocada no mesmo terreno do diálogo. É o espaço também marcado por vetores sociais anacrônicos, como a suposta ascendência física do homem sobre a mulher. Um mito desmentido pela própria tecnologia dos corpos: força muscular jamais foi a fonte real de poder. Sem diálogo, ao ver contrariada a perspectiva mítica de seu domínio, a contraparte masculina, movida por fúria patriarcal-narcísica, resvala para a violência. Em ricos e pobres, violência é linguagem sem palavras, expressão envenenada da miséria humana.

Violência organizada, porém, é estratégia coletiva de poder, aliás, o único ponto inequívoco do desgoverno federal. A farra das armas, que inflama o estado de violência com surtos agressivos, é a cara sem máscara do terror. Colecionador, praticamente um miliciano incubado, é uma intimidação latente. Mafializou-se a vida social desde o Norte até o Sudeste, que perde território para milícia e tráfico. O elevado potencial de guerra urbana é a mais vexatória ameaça à sociedade civil. Com o Estado caindo de quatro frente ao crime, a política de violência armada é a própria autonegação do Brasil republicano.

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