Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Espoliação como vício

Dinheiro não é apenas valor de troca, mas incremento de fantasias de eternidade e poder

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Tão logo solto, o ex-governador do Rio voltou à memória dos jornais a sua admissão pública de corrupção compulsiva, nos termos de vício em poder e dinheiro. É uma fala espantosa, porque sincera e confirmadora de um fenômeno que afeta, em escalas diferentes, a classe política no mundo inteiro. O que singulariza essa confissão é tanto o tamanho quanto a exibição pública da defraudação. "Taxa
de oxigênio" era o nome debochado da propina.

Além da sofreguidão quadrilheira, mobiliza o espanto do senso comum o mecanismo do vício alegado, isto é, da insatisfação pessoal com a mera posse de milhões, donde o desejo compulsivo de ir adiante. "Eu exagerei", prosternou-se o político. Esse é, na verdade, um aspecto inerente à força corruptiva do dinheiro, mas que ressoa como amor em Mefistófeles numa obra notável da literatura russa: "É preciso tomar as pessoas como elas são...Elas amam o dinheiro, mas foi sempre assim... A humanidade ama o dinheiro, seja feito de qualquer coisa: de pergaminho, de papel, de bronze ou de ouro" ("O Mestre e Margarida", de Mikhail Bulgakov). Nisso, o economista suíço Hans Binswanger vê "uma força de atração tão imensa que pouco a pouco suga todas as áreas da vida para seu vórtice".

Dinheiro não é apenas valor de troca, mas incremento de fantasias de eternidade e poder que, não raro, beiram a loucura. Daí o vício. Mas o cerne social da questão consiste em saber como isso acontece na esfera pública, ou melhor, como é possível a continuidade da prática espoliativa, uma administração após outra. Sobre o Rio, explicações meramente políticas vinculam as linhas mestras do fenômeno a uma organização partidária dependente de fisiologismo secular. Uma chaga histórica próxima à de outras regiões nacionais.

Nada disso, entretanto, dá conta da facilidade com que administrações estaduais e municipais descambam para a corrupção, viciante como um jogo. Uma hipótese é a de que a privatização do Estado, macrofenômeno do patrimonialismo brasileiro, tenha inflexão acentuada na paisagem fluminense, onde sucessivas dinastias de famílias e clãs se ampliam por "sócios ocultos" em currais eleitorais.

Na deslavada promiscuidade territorial entre Estado e organizações criminosas floresce a violência social. Por outro lado, o mal que espreita nas sombras de toda esfera pública vive solto na buraqueira local, sob a forma de fraudes e peculato. A desenvoltura benfazeja à beira de praia é tenebrosa em sede de governo. Na encruzilhada do crime, entretanto, ainda se perfila institucionalmente o risco da penitenciária de Bangu que no verão, dizem, é quente como o inferno, com taxa de oxigênio sofrível.

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