Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Uma massa falida

No país que tem mais templos do que escolas e hospitais, dá para confiar no povo?

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O estarrecimento com a amplitude da intentona golpista não pode ser menor do que o da suspeita de esvaziamento da operação de socorro aos ianomâmis pelas forças, nem do fato de que os medicamentos foram achados numa fossa em Boa Vista. Estavam lá desde o governo passado. Esse grau de descompaixão, síndrome de sociopatia genocida, acrescenta-se aos elementos do reexame necessário para bem compreender o comportamento de uma larga fração do povo nacional de hoje. Um dado do Censo é sintomático: o país tem mais templos do que escolas e hospitais.

Povo, vale repetir, não é o mesmo que população, mas uma ficção moderna, portanto, um conceito que, sob a égide da ideologia republicana, sempre produziu efeitos políticos. No século passado, San Tiago Dantas, chanceler e ministro da Fazenda do governo João Goulart, figura relevante da esfera pública, sustentava que "o povo brasileiro era melhor do que as elites". Um tempo em que opiniões diferentes não eram pretexto para injúrias nem cancelamentos pessoais. Assim, João Mangabeira discordava com metáfora jurídica: "O povo é uma massa falida". Entretanto, nos anos 80, Lula se valia do otimismo da canção sertaneja "Massa Falida" para mobilizar grevistas em portas de fábricas no ABC paulista.

Hoje arrefece a ideia progressista de povo como organização liberal das massas e, portanto, a crença na pressão popular como força transformadora. Vale lembrar o movimento das eleições diretas nos estertores do regime militar, que arregimentou multidões em comícios, mas foi reduzido à escolha indireta Tancredo versus Maluf no Colégio Eleitoral. Diretas assustavam a casa-grande.

Já o badernaço de 2013 gerou inéditos refluxos políticos. Não era "povo nacional" nas ruas, mas uma massa "dezembrista" (ao modo da malta parisiense que apoiou o golpe de Luis Bonaparte em dezembro de 1851), explosiva, nada cívica. Desenhava-se um novo espírito de tempo, nada estranho a quem conceba nação como "princípio espiritual". Entre nós, a concreta espiritualidade nacional foi sempre construção de um ativismo popular tido como festivo e cordial. Mas isso refluiu para as redes e para os templos religiosos (excluam-se os cultos afros, que sempre estiveram à margem da política), com o regressivo psiquismo da ultradireita.

No passado, movimentos minoritários europeus tentaram construir, por cultura ou por princípio espiritual, Estados-nações etnicamente homogêneos. O fundamento nacional assentaria num "povo" particular, mesmo sem território. Pode ser esse agora o caso brasileiro, um fundamentalismo bronco, egocêntrico e impiedoso, que não comporta a voz pública de diferenças civilizatórias como a dos ianomâmis e outras. Mas parece sonhar com uniformes. Afinal, dizia o cronista Antônio Maria, "homem ruim dorme batendo continência".

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