Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Borracha no futuro

As massas acordaram para a experiência política, mas sob formas perversas, captadas pela extrema direita

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Um estudo revela que 13 milhões de brasileiros deixaram de passar fome em 2023, o custo alto dos alimentos desacelerou, a economia obtém ganhos, a vida democrática supera os sobressaltos, mas decresce a avaliação positiva de Lula (PT). Algo semelhante ocorre nos EUA, onde esses fatores estão normalizados, porém, cresce nas preferências eleitorais a figura de Trump, um delinquente polimorfo. Na Argentina, 60% da população esfomeia, mas é elevado o índice de aprovação de Milei. Na alucinação, osso é filé.

Apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) durante manifestação na avenida Paulista - Danilo Verpa - 25.fev.24/Folhapress

São anomalias. Começa a ficar claro que elas reabrem de algum modo a noção de política. Por menos práticos que sejam pronunciamentos políticos de filósofos, vale evocar as posições públicas de Jurgen Habermas nos anos 1980 contra o neoconservadorismo irracionalista na Alemanha, assim como a sua especulação de que "se tivesse de apostar qual o próximo país que se tornaria fascista, minha aposta poderia ser: os EUA". Sem bola de cristal, anteviu Trump.

Entre nós, é recorrente a análise de que vivemos numa sociedade de classes com uma esquerda atrasada. Dessa redundância acaciana nada se conclui sobre a subjetividade política dos brasileiros nem sobre a dissonância entre seus comportamentos sociais e a infraestrutura socioeconômica. As massas acordaram para a experiência política, mas sob formas perversas, captadas pela extrema direita, a saber, setor financeiro, agronegócio e coorte de reacionários religiosos.

Acontece que a política parece ter-se deslocado da base normativa das formas democráticas para preocupações populares como anticorrupção e comunitarismo religioso. Da linguagem desses fatores está ausente não só a esquerda, mas também a formação política (sindicalista, social-democrata) de Lula. O que sai da boca do povo não aparece no radar de Brasília.

O fenômeno pertence ao neopopulismo global, com núcleos organizadores regionais, que delegam tarefas. No ato de 25 de fevereiro, na Paulista, mesmo com maioria branca, terceira idade e renda média, os 200 mil aderentes constituíam o estrato inferior de uma divisão de classes nas incumbências visíveis, com as quais o núcleo já não se compromete diretamente. Algo como a camada externa de uma cebola, que oculta outras. Com o mesmo odor.

O decréscimo da popularidade de Lula é da mesma natureza do sinal enviado pela presença de uma multidão daquele tamanho ao redor de uma personagem trêfega e desconexa. Mas no fenômeno das anomalias em pauta, desconexão é coerência: o abilolado que mete a mão no esgoto extremista é o mesmo que depositará o voto na urna da ultradireita, outubro à vista. Um índice resiliente da ideia antipolítica de nação sem democracia nem justiça social: olho no retrovisor e borracha passada no futuro.

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