Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Anhangabaú precisava de uma reforma, mas não de um arrasa quarteirão

Projeto de Jorge Wilheim de 1982 para o vale foi um dos marcos da nova concepção de cidade

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A polêmica em torno do projeto do Anhangabaú tem sido pautada pela superficialidade típica dos tempos atuais, onde três linhas e uma imagem bastam para as pessoas se posicionarem.

A comparação de duas fotos, tomadas de ângulos diferentes, seguida de pouca informação foram suficientes para que as pessoas tirassem conclusões definitivas e para que “cancelarem” um projeto que tem equívocos mas que também tem méritos.

As fotos, comparando a situação anterior, com alguma vegetação, com a atual, com o piso seco da esplanada para eventos, bastou para que uma avalanche de protestos inundasse as redes sociais, como se o problema da proposta fosse eliminar áreas verdes, o que não ocorrerá quando a obra estiver implementada. Se o leitor tiver paciência, podemos ir além disso.

O Anhangabaú é um símbolo das transformações de São Paulo. Benedito Lima de Toledo, em seu clássico “Três cidades em um século”, dividiu a história da cidade em três momentos: a cidade da taipa, a do tijolo e a do concreto. Acrescentaria um quarto momento, a “cidade das pessoas”, que ainda está em processo de consolidação.

O projeto de Jorge Wilheim para o Anhangabaú, de 1982, destruído pela atual intervenção, foi um dos marcos dessa nova concepção de cidade que estamos tentando construir. Ele merecia ser tratado com mais respeito, o que não significaria mantê-lo intocado, mas atualizá-lo sem destruí-lo inteiramente.

O Anhangabaú, totalmente arrasado, em obras para implantar a infraestrutura necessário para instalar os 850  jatos d'agua.
O Anhangabaú, totalmente arrasado, em obras para implantar a infraestrutura necessário para instalar os 850 jatos d'agua - Reprodução

O Vale do Anhangabaú foi ocupado de formas diferentes em cada um desses quatro tempos. Na época da taipa, era uma chácara de chá situada no periurbano do triângulo central. Com a República, veio a expansão urbana, o tijolo e o rio foi canalizado. A chácara virou um parque projetado pelo arquiteto francês Bouvard após uma polêmica que envolveu interesses imobiliários e vaidades profissionais.

A verticalização do centro, a partir dos anos 1920, marcou a “cidade do concreto”, que também poderia ser a “cidade dos automóveis”. Nos anos 1940, o belíssimo parque foi destruído para dar lugar a uma monstruosa avenida, prevista no Plano de Avenida. Salvou-se apenas a praça Ramos de Azevedo. A via diametral ligava as zonas norte e sul, conectando em Y a avenida Tiradentes com as projetadas avenidas 9 de Julho e 23 de Maio, ambas implantadas sobre córregos e rios.

O vale se tornou um deserto de asfalto, barulhento, poluído e inóspito, que dividia o centro. Em 1981, para dar um novo destino ao local, a prefeitura promoveu um concurso de projetos, vencido pelos arquitetos e urbanistas Jorge Wilheim, Rosa Kliass e Jamil Kfouri.

A proposta foi enterrar a avenida e sobre a laje de concreto implantar uma grande área pública. Implementada por Jânio Quadros e, depois, Luiza Erundina, o projeto pode ser considerado precursor da quarta fase de São Paulo, a “cidade das pessoas”, que se tornou uma referência do urbanismo recente paulistano, consolidado no atual Plano Diretor.

A Chácara de Chá, no final do século XIX.
A Chácara de Chá, no final do século XIX - Atelier de G. Gaensly & Lindemann

A expressão “cidade para as pessoas” foi cunhada pelo arquiteto dinamarquês Jan Gehl, cujos livros, projetos e ideias têm influenciado o urbanismo contemporâneo, na era do pós-automóvel. Gehl defende a apropriação do espaço público pelos cidadãos e o estimulo à mobilidade ativa, entre outras propostas.

Gehl tem sido, equivocadamente, considerado autor do recente projeto do Anhangabaú. Seu escritório (e não ele pessoalmente) deu consultoria e participou de oficinas participativas no início da gestão Haddad contribuindo com ideias urbanísticas para ativar o uso do espaço público. Essa concepção contribuiu para o programa Centro Aberto e trouxe algumas ideias para Anhangabaú, como o resgate da água através de fontes e espelhos.

Mas o anteprojeto do Anhangabaú foi desenvolvido pela equipe da SPUrbanismo e detalhado pelo escritório Biselli Katchborian Arquitetos Associados, contratado por licitação. O mais correto teria sido a realização de um concurso, acompanhado de um processo participativo contínuo, inclusive na definição do programa de prioridades e no debate do custo da obra.

Não resta dúvida que após 30 anos de implantação do projeto de Wilheim, o Anhangabaú necessitava de uma reforma. Isso, porém, não deveria significar a completa destruição do existente, o arrasa quarteirão que foi realizado.

Concebido como um espaço para as pessoas, ele era pouco utilizado. Os edifícios do entorno não se abrem para a área, pouco ocupada, que se tornou insegura. Como todo o centro, o espaço tem grande concentração de população em situação de rua.

A interrupção da avenida São João por um espaço rebaixado, que nunca foi utilizado e se tornou uma latrina a céu aberto, precisava ser alterada. A criação de uma grande área pavimentada adequada para grandes eventos culturais e políticos, uma vocação do local, tornou-se necessária, assim como a criação de elementos que atraíssem o uso.

A um custo muito menor, uma reforma que enfrentasse esses problemas podia ser feita, sem destruir integralmente o preexistente. O belo projeto paisagístico e de piso em mosaico português concebido por Rosa Klias, um verdadeiro patrimônio da cidade, podia ser mantido com correções que não destruísse o desenho original.

Setores específicos tinham se apropriado da área, como os skatistas. Eles se mobilizaram contra a obra, pois sentiram a perda de um lugar com o qual tinham identidade. As arquibancadas do Anhangabaú tinha se tornado, ao lado de espaços como o MACBA, em Barcelona, o South Bank, em Londres, e o Embarcadero, em São Francisco, referências internacionais dos skatistas.

O projeto da prefeitura peca por eliminar elementos importantes da memória da cidade. Mas corrige problemas, recuperando o eixo da avenida São João, criando uma esplanada (de tamanho exagerado) para eventos, criando quiosques que podem trazer mais gente para um uso permanente do local, criando novos fluxos de circulação para conectar os dois lados do centro e remanejando as áreas verdes removidas.

Embora trazer água de volta para o vale possa ser uma ideia interessante, implantar 850 jatos subterrâneos de alto custo e difícil manutenção é um exagero. E aqui reside um dos pontos cruciais da intervenção: seu elevado custo.

A gestão Covas, sem nenhuma consulta, resolveu fazer uma obra não prioritária por R$ 94 milhões. Uma reforma mais barata permitiria uma melhor utilização desses recursos. Por esse valor, seria possível implantar inúmeros parques e espaços públicos em várias subprefeituras periféricas. Ou reabilitar dezenas de edifícios abandonados no centro para habitação social e implementar uma ação de moradia para a população em situação de rua.

Finalmente, é questionável a concessão da área para a iniciativa privada. O edital permite o uso do espaço com acesso restrito em até seis dias por mês, o que significa privatização do espaço. Ademais, ideia de lucro em um lugar público que é utilizado pela população em situação de rua cheira a uma inevitável higienização. Mas isso é assunto para outra coluna.

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