Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

O mundo roda, roda 

O mais interessante é quando você quer alguma coisa e não tem

Nina Horta

Todos nós já vimos como as reminiscências são queridas no Facebook. Alguns publicam mulheres lindas de antanho, outros receitas da avó, alguns suas próprias caras anos a fora, e doces e frutas e quintais e cartões postais. E gatos e cachorros, pois não ia me esquecendo?  

É bom ou é ruim para nossa memória? Claro que é bom. Essa participação online de lembrar juntos nos ajuda a formar laços criativos com objetos que eram só nossos e que agora se entrelaçam com as ideias, perguntas e respostas de outras pessoas. Nossa relação se torna mais ativa e criativa, podemos conversar sobre aquilo e dividir impressões com quem também tem ou coleciona imoderadamente a mesma coisa.

Dentro do Facebook, quem recebe a informação não está passivo, mas imediatamente se torna um cúmplice nesse processo de se lembrar. Constrói junto. Para o colecionador, que ainda por cima tem que manter aquele objeto, não deixar que se acabe, é bem importante ter alguém que também queira participar dessa preservação. 

E já pensamos nos museus todos à nossa disposição, podendo tocar na tela, aumentá-la? E, quando esses novos aparelhos digitais começarem a conversar conosco, avisando que a salsinha da geladeira acabou, que a água gelada está no fim? Vamos ter que remodelar tudo, começar a pensar diferente, só por causa da internet.

Muito interessante e poderoso é como pegar essas coisas inertes, aquelas esculturas paradas com a mão na testa, dos museus, e começarmos a agitá-las e inventar novidades digitais. Pois que sempre podemos vê-las de outro modo, quase conversar com elas, estabelecer uns vínculos menos passivos. Ensinar crianças que só viram aquele objeto através do vidro? Fazer com que contribuam para a interpretação daquela coisa morta?

Vou contar uma bobagem a vocês. Nunca tive medo, desde muito criança, de mandar pedir coisas fora, de escrever para os mais longínquos rincões, e imagino que por não ser uma coisa normal, sempre tinha respostas.

Caixas de fósforos, folhetos de receitas, sementes de plantas desconhecidas que eu tanto regava que nasciam um centímetro e morriam afogadas em tanto zelo. E os artistas de Hollywood, então, todos se espantavam com aqueles pedidos de autógrafos que vinham do país das onças e macacos e bananas.

Mas, mais recentemente quando a eBay ainda era um grande mercadão de velharias e preciosidades, tive a chance de conversar com muita velhinha inglesa, saber por que caminhos havia andado aquela bolsa cobiçada, saber que a coisa amada não era só sua.

“Mando a minha bolsa de médico que usei somente duas ou três vezes na vida...” E o que chegava era a bolsa mais surrada que se podia imaginar, vista pelos olhos da dona. E cheias de histórias, de casinhas térreas com jardim de flores perenes na frente e sempre um gato. Inglês na Inglaterra não gosta muito de conversar, mas de escrever...

E louça, então, como é bom conversar de louça... E sempre tem receita junto pois aquele prato em especial só fica bom na forma de florezinhas roxas. Não compro mais nada na eBay, passou o surto, e acabou o dinheiro, apesar de que a maior atração da eBay era o preço baixo. Você nem queria aquilo, mas como deixar lá um garfo de prata por dois tostões?

O mais interessante é quando você quer alguma coisa e não tem. Pode procurar que não tem, como aquelas tigelinhas de tomar café com leite que os franceses usavam. Não tem por uma semana ou duas.

O pessoal do eBay tratava de achar e começavam a chegar fotos trincadas que alguém arrancava da boca da avó para me oferecer. Daí vão aumentando as ofertas, aparecem outros compradores, e num minuto já tem alguém fabricando e ficando rico às suas custas.

E tem coisa melhor do que chegar pelo correio uma tigela da Provença, pintada com lavandas com uma cartãozinho bem kitsch?

Bom, na verdade a conversa era sobre conversar com facilidade e rapidez e se entender dentro de mundos diferentes. Falávamos do Facebook e acabamos em histórias da carochinha do eBay. O mundo roda e roda, mas fica no mesmo lugar. 

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