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Paulo Vieira, do Jornalistas que Correm, fala tudo sobre corrida –mesmo aquilo que você não deveria saber

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Descrição de chapéu atletismo

É hora de superar o discurso da superação

Terminar uma corrida dura não torna ninguém melhor ou pior. Nem guerreiro

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Por uma única vez corri uma maratona como pacer, aquela figura a quem cabe manter judiciosamente, do começo ao fim da prova, o mesmo ritmo (pace). Pelo pacer, o corredor sabe se está abaixo ou acima do ritmo pretendido.

É uma velha tradição que nenhum cronômetro ou Strava aposentou. Confesso que minha performance deixou a desejar: nos primeiros dez quilômetros da prova corri muito mais rápido do que os 4:55 exigidos.

Naquele meu debute na função, numa corrida menor de Boston, nos Estados Unidos, um espectador insistia em me saudar com a expressão "work" a cada volta que eu dava. Coloquei o "work" na conta de algum pragmatismo qualquer da língua inglesa que sobreviveu, mais ou menos como o pouco afetuoso "no problem", o "de nada" deles.

"Work" naquela situação talvez pudesse significar "força" ou até mesmo "está funcionando". Pensando agora, fico feliz, de qualquer forma, que nem ele nem ninguém tenha dito algo como "go, warrior!"

Corredores na Maratona do Rio - Pilar Olivares/Reuters

Porque quem vai de livre e espontânea vontade participar de uma prova que exige certa resistência não é guerreiro. Não está a guerrear. Ainda que o corredor possa ter de vencer dores corporais e fantasmas mentais, quero crer que a guerra, se há guerra, está alhures: no trabalho, nas relações interpessoais, na contemplação dos próprios pensamentos, na indiferença (ou não, pelo contrário) com as mazelas do mundo.

Há certa glamurização do esforço nas provas de resistência, e isso foi visto às carradas no fim de semana de 1°/2 de junho, nas redes sociais, com a mara do Rio, que colocou mais de 38 mil pessoas em quatro diferentes distâncias (eu, na de 21 km). Pessoas indo às lágrimas, como a deputada federal paulista Tabata Amaral, que estreou na meia maratona e compartilhou copiosamente sua emoção no Instagram.

Sim, a prova "alvo" em geral premia um esforço prévio, que envolve uma rotina de treinos mais ou menos puxados. Prova e treinos, insisto, autoimpingidos.

Atletas na Maratona do Rio - Pilar Olivares/Reuters

Tendo a valorizar mais o processo, o caminho, do que propriamente o destino. Atividade física, voltando a me escorar no clã Nuno Cobra, é um dos pilares da vida saudável e tem tanta importância quanto a alimentação e o sono. Ela deve estar introjetada no dia a dia.

Desafios sem dúvida cumprem a função de ajudar a tirar pessoas do sedentarismo, mas uma vida menos submetida ao tobogã das paixões, e nisso insiro a própria preparação para uma corrida e a expectativa por sua chegada, talvez seja mais saudável.

É contraintuitivo ir contra o discurso da superação, tão fartamente distribuído pelo corredor amador —alguns de nós até citamos uma estatística absolutamente superdimensionada, considerando-nos "1% da população mundial" por um dia ter terminado a prova-fetiche.

Mas o discurso da superação transcende, domina certo imaginário coletivo. No mundo corporativo, por exemplo, não há quem não tenha sido submetido a sessões de vídeos de incentivo retirados justamente… do esporte.

Tudo numa prova é feito para realçar a ideia de superação, a ideia de que a glória (e não só a marina) está na linha de chegada. E que ali, ultrapassada a última barreira, é hora de chorar como um cabrito. Outras versões, ao fim e ao cabo, do velho "no pain, no gain".

Corrida, suponho, é bem mais do que isso.

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