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Descrição de chapéu atletismo

Maratona, o fetiche

Maus aí, mas cumprir uma prova de 42K está longe de separar homens de meninos

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O algoritmo me brindou com dezenas de fotos de amadores com a medalha da maratona de Boston, ocorrida nesta segunda-feira (15).

De fato, se até medalha de 5 quilômetros do Circuito das Estações é motivo de júbilo e selfie, o que dizer da maratona das maratonas, a centenária e concorridíssima Boston, que exige do candidato passar por um vestibular prévio para participar, ou seja, provar aos organizadores ter cumprido um tempo mínimo em outra maratona?

E esse tempo mínimo não é bolinho. Dependendo da faixa etária, totalmente impraticável.

Com tudo isso, correr 42K em Boston, São Paulo, Berlim, Olinda, Paris, Sorocaba, Chicago, Foz do Iguaçu, onde for, não passa de fetiche.

Fetiche-fetiche mesmo, digno de um filme de David Cronenberg. Se corresse vestido de vinil da cabeça aos pés, o maratonista provavelmente não causaria estranheza.

Corredores na chegada da 128ª maratona de Boston, em 15.abr.24 - Paul Rutherford/Getty Images via AFP

É que, no imaginário do mundo da corrida amadora, aquele que um dia completa a prova ganha outro estatuto, torna-se automaticamente uma espécie de semideus, tendo aparentemente cumprido um desafio, portanto, semidivino (ou ao menos sobre-humano).

Eu mesmo, que completei dez maras, sou chamado de "jornalista e maratonista" pelo amigo Ricardo Capriotti, âncora do programa radiofônico Fôlego, de que participo.

Se correr 42K implica doses bastante razoáveis de resistência física e principalmente mental, essa exigência está longe de ser, por exemplo, o desafio de um meio Iron (eu talvez não conseguisse nadar metade dos 1.900 metros exigidos); ou mesmo de uma ultra de 90K, caso da muito famosa Comrades, da África do Sul.

A sul-africana Gerda Steyn quebra o recorde da Comrades Marathon, entre Pietermaritzburg e Durban, em junho de 2023 - Rajesh Jantilal/AFP

Mas não é exatamente isso o que quero dizer: o que quero dizer é que, a depender das limitações de cada amador, correr um 10K no pau, por exemplo, pode ser muito mais desafiador do que a própria maratona feita em pace "paquera".

Prova-o a facilidade com que alguns amantes da distância empilham maratonas no seu currículo. E, aparentemente, quanto mais idoso, melhor: o uberlandense Nilson Lima, cidade cuja maratona o tributa, completou sua 355ª justamente em Boston. Ele começou a correr com 45 anos, há exatas duas décadas e meia.

Nilsão, que não se furta a parar no meio da prova para tirar fotos com os admiradores e amigos –disclosure: meu caso–, talvez chamasse de maratona, se isso para ele significasse sofrimento, as sessões de musculação e pilates que faz quando não está correndo.

O fetiche se autoalimenta porque muitos treinadores e comentadores da corrida amadora tratam a maratona com um respeito devocional. Nas assessorias de corrida, há um calendário de treinamento para os 42K que toma praticamente um semestre do incauto.

Numa das quatro maratonas que corri em São Paulo, ouvi de um colega de cascalho a frase famosa e hedionda, quando o povo do 8K, ou algo do tipo, fazia o retorno e deixava o pelotão: "Agora é que os homens se separam dos meninos".

Não, amigo: não há limites para os desafios atléticos, e a maratona pode ser, para muita gente, menos desafiadora do que os 8K para aqueles principiantes. E certamente menos desafiadora, para mim, do que o 1,9K de crawl do meio Iron.

E se fôssemos transpor a discussão para a esfera moral, aí que o fetiche talvez se realizasse mais perfeitamente, com a maratona virando um capricho, uma fixação qualquer, como os vinhos caros para o Kakay ou o número 7 para o meu querido cunhado Edgar, que Deus o tenha.

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