Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

A gente só se acha no outro

Amar é ter a ousadia de revelar que somos falíveis, atravessados por medos, vergonhas, fraquezas, sombras

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Milly Lacombe

Escritora e roteirista, colunista das revistas Trip/Tpm, cronista do UOL Esportes e autora do romance 'O Ano em Que Morri em Nova York' (ed. Planeta).

Eu tinha 13 anos, ela tinha 17. Jogávamos vôlei no mesmo clube, mas eu era da categoria mirim e ela era da infantil, então quando o treino dela começava o meu acabava.

Não havia naquele clube, ou em qualquer outro, jogadora como ela. Nem tão linda, nem tão talentosa. Cortava no meio da rede com uma categoria que eu não era capaz de ver em ninguém mais. Assim que meu treino terminava, pegava um suco e um sanduíche no bar e voltava ao ginásio para sentar na arquibancada e acompanhar o treino das meninas do infantil.

Disfarçava meu interesse único virando a cabeça para os lados vez ou outra, mas no resto do tempo ficava hipnotizada. A potência erótica de uma mulher é o maior superpoder do mundo, e eu me deixava capturar. Existia também alguma vergonha porque eu sabia que se um dia ela me dissesse “bom dia” eu não seria capaz de articular resposta. Mas, escondida na arquibancada, me sentia segura.

Partida de vôlei feminino entre Brasil e Porto Rico nos Jogos Pan-Americanos de 2015
Partida de vôlei feminino entre Brasil e Porto Rico nos Jogos Pan-Americanos de 2015 - Danilo Verpa - 16.jul.2015/Folhapress

E então, numa tarde que parecia ser apenas mais uma como outra qualquer, a levantadora titular do infantil não chegou e o treinador, me flagrando ali, gritou: “Você! É levantadora? Pode treinar com a gente? Preciso de alguém que levante a bola para ela”. Quando ele apontou para o meu objeto de fixação, uma boa parte de mim desmaiou naquele concreto gelado. Pensa rápido! Foge. Fabrica um mal súbito. Faz alguma coisa para escapar dessa cilada que vai revelar à melhor cortadora das galáxias que você é incapaz de falar, de colocar uma perna na frente da outra e de levantar uma bola.

Olhei para trás na esperança de que houvesse ali uma outra levantadora, menos interessada em meninas, menos inadequada para esse negócio de sociabilidades que envolvem desejos. Não havia. Isso não podia estar acontecendo. Eu era feliz apenas observando. Não queria nada em troca, até porque eu já recebia muita coisa, que era o direito de voltar para casa e sonhar. Era o que o mundo tinha a me oferecer porque duas mulheres, me disseram, não podiam jamais se beijar. Os sonhos das minhas amigas eram reais, os meus eram fictícios, e isso me dilacerava. Meu conforto eram as tardes solitárias e clandestinas na arquibancada. Tudo acabou. Agora ela saberia da minha existência, entenderia meus limites de coordenação motora, porque eu seria incapaz de levantar uma bola sequer, e meus limites cognitivos, porque eu não podia mais associar palavras.

Como quem caminha para o fuzilamento, desci os degraus da arquibancada. Eu estava em quadra, e ela, me olhando, disse “oi”. Não lembro se respondi, mas lembro me sentir liquidada. Minha missão era bater bola com ela: eu levantava, ela cortava, eu devolvia de manchete, ela cortava… Depois de um começo trepidante fui inundada de uma improvável audácia e passei a acertar as devoluções. Minha frequência cardíaca ainda era máxima, mas já não achava mais que ia morrer em quadra.

Quando a levantadora titular chegou, fui dispensada.

Tinham sido 20 minutos, talvez nem isso, mas nada jamais seria como antes. Naquela tarde entendi que amar é ato de coragem. É correr riscos, é ter a ousadia de revelar que somos falíveis, atravessados por medos, vergonhas, fraquezas, sombras. É andar em direção ao precipício e saltar sem saber se voaremos ou nos estatelaremos. Algumas vezes, voamos. Em outras, nos estatelamos. Mas em todas, a gente pode se nutrir da potência de nossas vulnerabilidades, isso que nos torna humanos, e ainda corre o risco de se encontrar com a pessoa mais importante da nossa vida: nós mesmos. Porque a gente só se acha no outro.

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