Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
Descrição de chapéu casamento

Pra que rimar amor com dor (de barriga)?

Nem sempre uma vida de merda é salva pelo amor

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Tati Bernardi
Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão. Pela Cia das letras lançou "Depois a Louca sou eu" e "Você nunca mais vai ficar sozinha".

Lembro dos olhos da Juliana brilhando quando ela me contou que fez depilação a laser no corpo inteiro. Ela andava com uma pinça na bolsa e caçava suas penugens, obcecada em ser uma mulher muito lisa, "sem defeitos" —e eu nem precisava ser feminista para revirar os olhos.

Quando começava a sair com um novo carinha, limpava compulsivamente a casa, esfregava enlouquecidamente os cabelos, perfumava os lençóis e os travesseiros.

Certa feita viajamos para a praia, e ela passou uma manhã inteira me olhando meio torto. Dizendo apenas a frase: "É, mas também você não ajuda". Eu estava deprimida porque enfim tinha terminado um namoro um tanto tóxico, mas ela insistia: "Pra mim tá bem claro por que sua relação não deu certo". Percebi que ela mirava fixamente meu calcanhar, que na loucura de uma vida profissional bastante ativa não havia sido "lixado e hidratado como se deve".

Daí você me pergunta: "E por que você aturava essa desgraçada?". É simples: tirando a parte que ela era insuportável, ela era muito legal. E eu torcia para que algum rapaz percebesse suas qualidades (ou que a terapia dela fizesse efeito) e suas tentativas de namoro passassem de uma semana, às vezes, com sorte, 15 dias. Apesar de bonita e inteligente, Juliana era sistematicamente desprezada por toda uma gama de trastes de variadas nacionalidades.

Ilustração de cloche sendo aberta e revelando uma mesa de jantar com pratos, guardanapos, taças e vela.  Há quatro cadeiras em volta da mesa
Angelo Abul/Folhapress

Juliana ficava tensa com o fato de que quase toda relação começava com um convite para jantar ou para o cinema. Dizia que jantar lhe sujava os dentes, dava "bafo" e que cinema lhe entortava a roupa e bagunçava o cabelo. Salada, a coisa mais leve possível (ela também tinha medo de ter gases), era a mais perigosa, sempre deixando um verdão nos dentes. Comédia ou drama sempre borravam sua maquiagem.

Daí, no Réveillon de 2014, Juliana foi para uma pousadinha romântica com um pretendente. Era um quarto pequeno, muito arrumadinho e limpinho, e com uma provocação: uma divisória transparente separando o quarto do chuveiro.

Juliana e seu mozão comeram um peixe bem leve, brindaram com vinho branco caro e voltaram ao aposento para fazer uma contagem regressiva íntima e sensual. Ela escovou os dentes com avidez, gargarejou Listerine roxo, garantiu axilas macias e perfumadas, passou só uma gotinha de lavanda atrás da orelha e... sentiu a primeira pontada. O peixe estava estragado e, quando ela pensou que "talvez passasse mal", já sentiu um jato de filme de terror saindo pela boca. Percebeu que cagaria nas calças se não sentasse imediatamente na privada, e o som que emergiu, apesar da contenção do vaso, humilhou os fogos de Copacabana. O mozão, que tinha comido a mesma coisa, passou a esmurrar a porta do banheiro e a gritar algo como: "Pelo amor de Deus, mulheeeer, precisa ser agora ou eu"eu nem sei!". E então, eles que se conheciam havia apenas 12 dias, que falavam ainda baixo e não contavam muito da própria vida, que tinham escolhido aquele quarto minúsculo com aquele minibanheiro, cagaram, vomitaram e vomitaram enquanto cagavam, juntinhos.

Enfim, nem sempre uma vida de merda é salva pelo amor. Talvez esse seja um caso, muito bonito, em que uma vida a dois foi salva pela merda. Juliana está casada com o homem do episódio embaraçoso há 16 anos, tem dois filhos e seus pelos tornaram a florescer.​

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