Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Marcinha da Corintho & Dani Bardt

Era como se paetês pretos tivessem caído do palco e sido bordados no rosto daquela pessoa na plateia

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Chico Felitti

Repórter ganhador dos prêmios Petrobrás e Comunique-se de jornalismo, é autor de “Ricardo & Vânia” e "A Casa - A História da Seita de João de Deus".

Era como se dois paetês pretos do vestido de Marcinha da Corintho tivessem caído do palco e sido bordados no rosto daquela pessoa na plateia que tinha acabado de completar 18 anos. “De tanto que os olhos dele brilhavam olhando para mim, como duas jabuticabas”, relembra Marcinha. O ano era 2002 e ela já era uma estrela há décadas.

Marcinha ficou famosa na noite dos anos 1980, quando era a atração principal da Corintho, casa de shows colada ao shopping Ibirapuera, onde fazia espetáculos de dança e de dublagem. Tinha uma trupe de dez bailarinos, iluminador e figurinista próprios à sua disposição. Seu sucesso na época era tanto que o nome da casa de show virou seu sobrenome artístico.

Mas a pessoa apaixonada que olhava da plateia do bar da sauna a via ali pela primeira vez. Era Dani, um jovem de 18 anos, menos da metade da sua idade, que ela não revela. Fazia poucos meses que ele era garoto de programa na sauna Lagoa. Tinha começado a trabalhar para ajudar a mãe, evangélica, a pagar as contas e a montar o enxoval do primeiro neto. Era bem o período em que Marcinha, radicada na Itália desde os anos 1990, passava férias no Brasil, e havia fechado um contrato para se apresentar na sauna às quartas, aos sábados e aos domingos. Já no segundo show, ela notou os olhos de lantejoula se movendo enquanto dançava, como se estivessem ligados ao seu corpo por um fio invisível. Correspondeu o olhar. Sorriu de cima do palco. “Eu vi aquele menino lindo. Ele deu a mão para mim e não soltou mais.”

Os dois trocaram telefones. Passaram a se encontrar no apartamento brasileiro dela, numa viela da rua 25 de Março. Dois meses depois de se conhecerem, estavam morando juntos. “Eu dava o truque, falava: ‘Você não quer dormir aqui, assim economiza a passagem de ônibus?’”, Marcinha conta, e ri. Menos de seis meses depois, estavam embarcando para a Europa. “Vamos para ‘Milano’ comigo, que sua vida vai mudar”, prometeu ela. E de fato mudou.

Marcinha se prostituía, disso os dois sabiam desde o início. Foi assim que pagou pelas plásticas, pelas joias e pelo que chama de “melhor apartamento de ‘Milano’”, na Via Melchiorre Gioia. “O ponto era ótimo. Eu descia na porta, trabalhava. Eu botava anúncio, trabalhava. Eu trabalhava e trabalhava e trabalhava.” Ela incentivou seu namorado a continuar vendendo sexo. De dia, ele batia ponto numa sauna em Milão. Depois do expediente, Marcinha criou um novo mercado para que explorasse. “Um dia, cheguei e disse: ‘De tardezinha, por que você não coloca uma peruca e atende os clientes?’ Vai ser sucesso”, aconselhou Marcinha. Sua intuição estava certa: “Ela fazia 12, 13, 15 clientes, montada. Porque você sabe como são os italianos… Era um tal de: ‘Como você é linda, como você é bela’.”

As transexuais Marcinha da Corintho (esquerda) e Dani Bardt (direita) - Arquivo Pessoal

A peruca começou a ficar cada vez mais tempo na cabeça de Dani. Não era só à tarde, mas também de manhã e de noite. Até que só a tirava para dormir. Na época, Marcinha achava que podia ter induzido Dani a fazer algo que talvez não quisesse. Mas, em 2021, ela sabe que só ajudou o amor da sua vida a tomar coragem para fazer uma travessia. Uma travessia parecida com a que ela começou aos 13 anos, quando pediu licença à identidade masculina que a sociedade lhe havia atribuído e passou a se apresentar como a mulher que é. “Ninguém faz a cabeça de ninguém, né? A pessoa é para o que nasce. Ela sempre foi ela.” Mas, foi nesse período de libertação que começaram as brigas. “A gente tinha muito ciúme. Achávamos que era ciúme de cliente, mas hoje eu sei que era vaidade. Era ciúme uma da outra.”

Depois de anos sem se desgrudar, Dani tirou férias. Veio ao Brasil sem Marcinha, pela primeira vez. E, quando voltou, era outra. “Eu fui buscar ela no aeroporto, ela estava de peito e de cabelo. Mulher de tudo.” O amor da sua vida tinha transicionado. “Meu nome agora é Dani. Dani, de Daniella Bardt”, Marcinha ouviu. E, sorrindo, chorou. As duas saíram do aeroporto de mãos dadas. “Eu vi ali que a gente era irmãs.” E nunca mais brigaram.

Em 2021, Marcinha está em São Paulo, quarentenada com seus três cachorros: os shih tzus Bambi e Guapo e a husky siberiana Maya. Dani está em Milão. As duas se falam todos os dias, o dia todo, em um diálogo que começou 19 anos atrás e nunca se calou. Depois de Dani, Marcinha desistiu do amor erótico. Abdicou da libido, que considera um grilhão. Passou a tomar um bloqueador de hormônios sexuais masculinos. “Eu prefiro assim, tomar remédio para não sentir nada.” Nada, não. Há um tipo de amor que Marcinha ainda sente. O amor por Dani, o marido que se revelou a irmã que nunca teve. “Eu não quero mais ninguém, porque eu pensava na minha cabeça que eu tinha que ter alguém para ser feliz. Mas, toda vez que eu me envolvi, a felicidade foi momentânea e acabou muito rápido. A única pessoa que eu tenho até hoje é a Dani.”

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