Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Dois ambientes

Uma história de amor entre uma mulher e seu apartamento

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Pedro Mairal
Buenos Aires

Ninguém aluga o apartamento. Que estranho que não se alugue. Um ano numa página da internet e nada. As minhas cunhadas, que estranho, todos, que estranho, que estranho. É bem localizado e ninguém o aluga. É iluminado, pequenininho, mas iluminado... Ninguém aluga o apartamento porque eu não quero que se alugue. Finjo que quero, mas não quero. Emito más vibrações quando o mostro, vendo-o mal, exagero sobre os problemas de aquecimento, o barulho do trem, o atraso no condomínio, a falta de segurança... As pessoas agradecem e vão embora. E eu fico ali, um tempo sozinha. Tiro a bateria do celular. Me deito no chão, de blusa, casaco, braços abertos, pernas abertas. Estirada no meu espaço.

Gosto de ficar sozinha. Às vezes leio sentada, as costas apoiadas na parede. Às vezes adormeço. Não há nem um móvel. Só um telefone velho em um canto do chão, desconectado. O apartamento era da minha avó, depois foi da minha mãe e,agora é meu. Dois ambientes em um bairro que costumava ser mais bonito, mas continua bom. Vivemos aqui com a minha mãe por quase dez anos. Me casei, saí de casa, tive três filhos, minha mãe morreu. Demorou para esvaziar com as coisas dela. Teve um inquilino por seis meses. Um sujeito horrendo, encolhido, especialista em informática, meio roedor, feito um hamster gigante, e que deixou manchas de umidade em lugares esquisitos. Foi um alívio quando ele foi embora. O lugar voltou a ser meu.

A grana viria a calhar, é verdade. Mas para mim o melhor é poder ficar sozinha. Às vezes vou pegar as contas que jogam debaixo da porta. Fico por uma hora. Saio do mundo e do tempo. Ali não existem planos, nem desejos, nem medos, o passado já desapareceu e o presente não é outra coisa a não ser o meu pulso e a minha respiração.Nada de: mãe a mochila, mãe o aniversário da Gabi, as chuteiras, o vestido, amor vamos pensando se para Floripa ou Cabo Polonio, bege ou verde-seco, Volkswagen ou Toyota; o que tem pra comer? Você passou no supermercado? O apartamento não se aluga e nele eu me desmonto. Nem mãe, nem esposa, nem amante, nem diretora de desenvolvimento. Nada. Sozinha nos dois ambientes do meu coração, nos dois ambientes dos meus olhos, das minhas mãos abertas, minhas pernas, meus pés, sem anéis, sem sapatos.

Às vezes me movimento, falo comigo. Ando como um zumbi, uma louca, a rainha da Holanda. Atuo para ninguém. Recordo movimentos das aulas de dança, aos quinze anos, na academia. Danço de meia-calça. Um giro, um gesto. E também posso ficar quieta e calada, se quiser, como que metida dentro de uma extensa e bonita pergunta. Longe do amor. Chega de amor. Será que ele vai pensar que tenho um amante? Não diz nada. Gosto que ele tenha dúvidas. O meu corpo é meu outra vez.

Foi difícil tirar o amor de cima de mim. Com todas as suas gosmas e crostas, vazios, dores, todas as fúrias. Longe de mim. Chega de homens me cutucando, querendo entrar emmim. Língua, pinto, dedos, culpa, fluídos, palavras, tristezas querendo entrar. O que eles procuram? O que acham que perderam dentro do meu corpo? Aqui não entra mais ninguém. Fiquem do lado de fora. Tenho a chave e tranco a fechadura com duas voltas. Algum dia talvez eu traga uma cama, uma escrivaninha, um sofá, ou talvez não.

Quero ficar em silêncio por mil anos para que se calem os ecos dos gritos e dos prantos. Os meus, os teus, os de todos. Sem sinal, sem wifi, sem ondas de rádio que atravessam o sono com ruído de fritura eterna, ruído branco de conexão. Cortar todos os cabos, os cordões, os pedidos de carinho. Ouvir por fim esse silêncio que existe atrás do silêncio. Dois ambientes, dois pulmões enchendo-sede ar pela primeira vez em anos. Uma cozinha, um banheiro. Bem iluminado. Excelente localização. Nunca será alugado.

Tradução por Livia Deorsola

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