Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Uma Lua maior do que a vida

Nunca, antes dela, eu havia experimentado amor tão abundante

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Eu a vi pela primeira vez em um dia quente em 2009. Até aquele dia eu dizia não acreditar em amor à primeira vista. É curioso como nossas crenças, que levamos anos para construir e formatar, podem ser desmontadas em questão de instantes. O amor foi recíproco e desde então passamos a dormir e acordar juntas todos os dias.

Nunca, antes dela, eu havia experimentado amor tão abundante.

Ela estava do meu lado nos melhores dias, como naquele em que minha empresa ganhou uma licitação e eu pude me estabelecer como empresária de sucesso, e nos piores, como naquele em que recebi o diagnóstico de um câncer.

Gata aparece embaixo de um cobertor
Gaia, uma gatinha como jamais haverá. Minha companheira e fiel escudeira - Arquivo pessoal

Ela viu pessoas chegarem e partirem. Viu castelos ruírem. Não ligava. Era possuída, como escreveu Elizabeth Bishop, pela compreensão de que perder é uma arte.

Tudo o que ela parecia querer era meu colo e um pequeno jardim onde pudesse tomar um pouco de sol. Juntas, como pediu o poeta, a gente inventava caminhos.

Nossa relação foi se aprofundando. Ela me via chorar e vinha ao meu resgate. Me dava a patinha, me fazia um dengo com a cabeça e, de um jeito silencioso mas potente, me indicava que tudo ficaria bem.

Ela estava certa. Tudo ficou mesmo muito bem.

O diagnóstico de uma doença que poderia ser terminal foi, na verdade, o chamamento para uma nova vida. De um jeito cheio de dores e descobertas, renasci. A única constante na vida, entendi, era a presença dela ao meu lado.

Curada, fui morar na praia e fiz para ela um jardim lindo, onde passava as tardes em busca de uma amiga de sol sob a qual pudesse se esticar.

Quando eu lavava a louça, ela subia na pia e me fazia companhia. Na mesa do café da manhã, chegava antes de mim, deitava na mesa e me observava enquanto eu mastigava.

Eu meditava e ela se deitava aos meus pés. Uma vida tão simples quanto boa.

Um amor telepático, instintivo, natural, abundante.

Há um mês quem ficou doente foi ela.

Uma doença que a debilitou mas que foi incapaz de tirar sua beleza.

Aos poucos, foi deixando de andar, de comer e de beber. Mas não deixou de vir ao meu resgate, nem de se deitar em meu colo.

Em nossa última noite, uma noite quente de outubro, debaixo de uma lua que parecia maior do que a vida, eu a coloquei em meu peito.

Ficamos assim por algumas horas, e eu senti sua respiração sincronizar com a minha. Entre pequenos e quase imperceptíveis espasmos, um suspiro e o corpo que balançava como querendo se libertar de alguma coisa que estivesse presa.

Ela entrou numa espécie de transe e eu não demoraria a entender que aquele era seu ritual de passagem.

Durou algumas horas, e já não sei mais quanto tempo ficamos coladas sob a lua. Até que uma última tremida me disse que ela tinha partido.

O amor da minha vida foi embora em meu peito.

Nesse momento, eu a abracei mais forte e beijei sua cabeça. Agradeci em voz alta por ela ter me feito tanta companhia durante esses anos. Por ter cuidado de mim, por não ter me deixado quando a vida complicou, por ter me acolhido e me adotado.

Gaia, uma gatinha como jamais haverá. Minha companheira e fiel escudeira.

Meu bichinho tão dengoso quanto ágil talvez não pudesse mesmo ter outra morte. A morte mais doce e linda que eu poderia desejar.

Voa, Gaia. Um dia, quem sabe, você volte a se deitar em meu peito sob uma nova Lua que seja maior do que a vida e do que a morte.

PS: Para Tati Isler, a Gaia em minha vida.

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