Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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O Rei Momo João e seu séquito de rainhas por uma noite de Carnaval

Pose de dono da festa, meio soberano e meio bobo da corte, exerce um certo fascínio

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São Paulo

"Valéria Valenssa, Luz del Fuego, Roberta Close, Luma de Oliveira. Eu comi todas. Não todas elas, mas umas mulheres que pareciam elas, sabe? O mesmo tipão, a mesma estirpe, a mesma importância." João Candura não é modesto sobre a sua vida sexual. Até porque olha para ela com o conforto dado pela distância de décadas. "Hoje, não consigo nem comer uma coxinha com Tubaína que já tenho uma azia de não conseguir deitar", diz o homem de 120 quilos e uma risada pesada como uma bigorna. É que João exerceu por décadas a soberania de ser rei, uma posição que o colocava em evidência. Da década de 1970 até quase os anos 1990, ele foi o Rei Momo do Carnaval de salão de Tupã, no interior paulista.

A coroa caiu em sua cabeça como se ele tivesse escorregado em uma casca de banana. "Eu trabalhava na farmácia, daí um dia passou um sujeito de São Paulo, olhou pra mim, virou as costas e torceu o pescoço, só pra olhar de novo." O cliente desconhecido era um festeiro que tinha sido contratado por um clube local para criar um baile de Carnaval digno da Cinelândia carioca. Era 1977, fevereiro já estava batendo à porta e a festa só carecia de mais um funcionário: um homem bonachão e um tico cruel para ser rei por uma noite. "Ele perguntou se eu toparia, disse que pagava quase metade do meu ordenado. Eu não pensei duas vezes."

Foliões desfilam no bloco Céu na Terra, no Rio de Janeiro, durante fim de semana de pré-Carnaval
Foliões desfilam no bloco Céu na Terra, no Rio de Janeiro, durante fim de semana de pré-Carnaval - Gabriel Monteiro/Riotur

Ele estreou no Carnaval de 45 anos atrás sem nem saber qual era o protocolo para o soberano do Carnaval. "Daí eu aprendi fazendo. Aprendi que o Rei Momo fica de pé na porta do baile, depois fica de pé no palco do baile, cumprimentando as pessoas, dando faixa pra melhor fantasia e tirando uma onda." Esse papel, que é metade de soberano de Estado e metade de bobo da corte, caiu como uma luva para esse homem que, desde moleque, colecionava idas à diretoria da escola por mau comportamento.

Outra coisa que João aprendeu já no primeiro ano é que o Rei Momo exerce um outro tipo de fascínio. "Tem mulher que tem tesão. A gente acha que mulher não gosta de gordo. Mas no Carnaval elas gostam de gordo. E umas mulheres que eu vou te contar." O primeiro caso passageiro foi no próprio Carnaval de 1977, com uma loira que deu a mão para cumprimentar o Momo enluvado, mas demorou alguns segundos para puxar os dedos de volta. "O mole é uma coisa que quem tá de fora nem repara. Mas quem tá ali, na porta do salão, sente de imediato que a mulher tá dando mole." Os dois fizeram o que tinham de fazer em um encontro furtivo, de pouco mais de uma marchinha, no banheiro do camarim do palco do clube.

No ano seguinte, foi outra mulher. E na virada da década de 1980, outra desconhecida. João desconhece o nome da maioria das paixões de Carnaval, seja porque o tempo agiu como cupim na sua memória ou porque elas nunca se apresentaram. É por isso que empresta o nome de famosas quando lembra das conquistas. "Só que ninguém queria namorar o Rei Momo, entende? É só uma fantasia", ele explica, pra depois comparar as transas carnavalescas com uma roupa de odalisca que fica no armário um ano inteiro, esperando o momento certo para sacudir o cheiro de naftalina.

João conheceu sua mulher semanas depois de um Carnaval, quando era só um balconista de farmácia. "E ela me quis assim mesmo, gordo e pobre. Daí eu vi que era amor." Casou-se, teve filhos, divorciou-se e repousou o cetro quando se mudou para Osasco, na Grande São Paulo, quando estava prestes a se aposentar do emprego que tinha nos outros 364 dias do ano.

Em 2023, o Carnaval é algo que só entra na sua vida pela televisão. "Eu nunca mais fui a um baile. Acho que nem vou. Não tenho mais idade, não tenho mais pose. A única coisa que eu ainda tenho é o peso, mas isso não dá realeza a ninguém", ele gargalha. "Só me deu muita sorte uma vez na vida, o que já tá mais do que bom, né?". A imensa maioria das pessoas nem sonha com ter uma realeza descoberta em si enquanto leva uma vida pacata. "E eu posso te dizer que fui um bom rei."

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