Otavio Frias Filho

Diretor de Redação da Folha de 1984 a 2018, autor de “Queda Livre” e “Cinco Peças e Uma Farsa”.

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Otavio Frias Filho

Intervenção militar

A partir de um ponto, só a democracia é capaz de regular uma sociedade

Afora a proclamação da República, os militares (na prática, os comandantes do Exército) intervieram na política por cinco vezes.

Em 1945, para depor o Getúlio Vargas ditador que até então haviam sustentado. Em 1954, para exigir a saída de Vargas, desta vez eleito pelo voto, quando se revelou que o atentado contra o líder da oposição na imprensa (no qual morreu um oficial da Aeronáutica) fora preparado nos bastidores do palácio presidencial.

No ano seguinte, o então ministro da Guerra desfechou um golpe sui generis, dito preventivo ou legalista, destinado a garantir a posse do presidente recém-eleito, Juscelino Kubitschek. Em 1961, em face da renúncia de Jânio Quadros, os generais vetaram a posse do vice João Goulart, afinal admitida graças ao arranjo parlamentarista, que mitigou seus poderes e seria revertido por plebiscito em 1963.

Essas intromissões foram resultado da alta voltagem ideológica que percorria as sociedades num mundo dividido em dois sistemas e duas potências que terceirizavam seu conflito para países pobres, convertidos em ditaduras de direita ou de esquerda conforme o lado vitorioso.

O súbito acesso ao poder, em Cuba, de revolucionários que a hostilidade americana empurrou nos braços soviéticos, criou o que para a esquerda seria um paradigma, e para a direita, uma paranoia.

Em meados de 1963, Goulart começou a perder o controle de sua base de apoio sindical e parlamentar, que se radicalizava. Camponeses eram treinados como guerrilheiros para fazer a reforma agrária "na lei ou na marra".

Os dois lados se preparavam para a violência; pensava-se que o presidente daria o golpe ou seria vítima de um. Mas foi preciso que fuzileiros e sargentos, amotinados em sovietes contra seus superiores, recebessem perdão presidencial para que os generais se resolvessem a intervir. E desta vez para exercer um poder brutal por 20 anos.

No aforismo que o tornou famoso, Carl von Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por outros meios; o mesmo se diga das ditaduras. Uma facção política, para se impor aos adversários, submete a sociedade inteira a uma feroz restrição de direitos. Aos horrores evidentes da ditadura –os assassinatos e as torturas, as baixezas estimuladas pelo medo e pela boçalidade imperante– vêm somar-se seus efeitos degradantes na autoestima de um povo que não se autogoverna.

Qual o saldo desse longo período (1964-85)? Modernização industrial e da infraestrutura, que de fato ocorreu, e crescimento econômico (média anual de 6%) são seus melhores álibis. O avanço se devia mais, porém, ao estágio formativo do país do que ao regime de governo: nos 20 anos anteriores, em plena democracia populista, o crescimento anual havia sido 7%. Enquanto isso, na ditadura a disparidade social aumentou e a remuneração do trabalho foi arrochada (o salário mínimo perdeu 25% do valor real).

Um dos piores resultados desencadeados pela industrialização a toque de caixa foi a explosão urbana que resultou nas periferias das grandes cidades, quase sempre mal planejadas e abandonadas pelo Estado à mercê do crime organizado. Outro foi o impacto ambiental exercido não apenas por megaprojetos causadores de ampla devastação, mas pela mentalidade de ocupação predatória.

Difícil saber se a corrupção era menor que hoje; era com certeza menos investigada. E pairam dois crimes nefandos, nunca reconhecidos pelo Exército como deveriam: a tortura e o assassinato como método de repressão e a perseguição violenta movida contra guerrilheiros que pretendiam instalar sua própria ditadura de esquerda no país, decerto, mas também contra opositores pacíficos, comunistas, cristãos e até liberais.

A causa imediata do fim da ditadura foi a catastrófica recessão de 1981-3, provocada pela disparada nos preços do petróleo. Mas sua erosão foi um processo "lento, seguro e gradual", como o general-presidente Geisel definiu a descompressão por ele iniciada quase dez anos antes, em 1974.

Foi na trabalhosa maturação dessa "abertura" que se consolidou, nas camadas politizadas, a profunda consciência democrática, expressa num pacto não escrito de não violência, hoje posta sob desafio.

Há um momento em que a trama das relações econômicas e sociais se torna complexa demais para caber na lógica simplória da caserna, há um ponto em que a democracia passa a ser o único sistema capaz de regular uma sociedade atravessada por incontáveis interesses contraditórios.

Uma intervenção militar demandaria, além de condições históricas que hoje não parecem presentes, uma sociedade mais simples, mais rudimentar e primitiva, que já desapareceu entre nós há várias décadas.

Erramos: o texto foi alterado

O primeiro nome de Carl von Clausewitz foi citado incorretamente como Claus.

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