Patrícia Campos Mello

Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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Patrícia Campos Mello

Cônsul francês é vítima dos visigodos digitais brasileiros

Ataques contra diplomata mostram que falta de civilidade nas redes veio para ficar

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Brieuc Pont, cônsul-geral da França em São Paulo, durante jantar no Clube Hebraica - Greg Salibian/Folhapress

A mais recente vítima dos visigodos digitais é o cônsul geral da França em São Paulo, Brieuc Pont.

O bate-boca começou com um tuíte de Filipe Martins, secretário de assuntos internacionais do PSL, após os protestos dos 'coletes amarelos' em Paris –como noticiou o BuzzFeed.

“Uma modestíssima sugestão ao Presidente Emmanuel Macron. Antes de defender o Acordo de Paris, que tal defender primeiro Paris? Faça um acordo com o seu próprio povo antes de criticar as decisões do governo brasileiro e interferir desrespeitosamente em nossas questões domésticas”, disse o articulador da política externa bolsonarista, respondendo às críticas de Macron aos planos do presidente-eleito para tirar o Brasil do Acordo de Paris.

Durante a reunião do G20, em Buenos Aires, na semana passada, Macron deu a entender que o acordo entre Mercosul e UE estaria fora de cogitação se o Brasil abandonasse seus compromissos para mitigação das mudanças climáticas.

“Não sou a favor de que se assinem acordos comerciais com potências que não respeitem o Acordo de Paris. Tenho pedido a minhas empresas que se adaptem e não assinarei tratados com países que não o façam ou não o respeitem.”, disse o líder francês.

Foi com indisfarçada Schadenfreude, portanto, que Martins e os bolsonaristas receberam os violentos protestos dos coletes-amarelos contra os impostos ambientais de Macron.

Mas o jornalista Alexandre Garcia, que supostamente ambiciona o cargo de porta-voz do governo Bolsonaro, resolveu pegar mais pesado ao retuitar o comentário de Martins.

“Incrível admitir que Von Choltitz defendeu Paris mais que Macron, mesmo sob ameaça de ser fuzilado por Hitler”, comentou Garcia.

Dietrich von Choltitz foi o general nazista que se recusou a cumprir a ordem de Adolf Hitler para destruir Paris. Em suas memórias, Choltitz afirmou que não cumpriu as ordens do Führer porque gostava muito de Paris e achava que Hitler tinha ficado louco. Ficou conhecido para alguns como o salvador de Paris.
Mas a realidade era menos cor-de-rosa.

Antes de “salvar” Paris, Choltitz participou da destruição do centro de Rotterdam em 1940, obliterou Sevastopol e cumpriu ordens para exterminar os judeus da cidade, e liderou da batalha de Kursk (1943, mais de 250 mil mortos).

Para o historiador e editor Ian Buruma, não foi exatamente altruísmo a motivação de von Choltitz para desobedecer às ordens de Hitler.

“A mais provável explicação para a rendição de von Choltitz em Paris foi ter percebido que a situação era desesperadora, então ele quis salvar sua pele evitando uma missão suicida e acreditou que, ao fazer isso, poderia salvar sua reputação após o fim da guerra. Negar-se a deixar que Paris queimasse seria a maneira mais eficiente de encobrir seu passado sórdido. Ao fazer parecer que somente sua decisão corajosa é que salvou a cidade da destruição total, von Choltitz entrou nos livros de história como um herói, em vez de criminoso de guerra”.

O presidente francês Emmanuel Macron, durante encontro do G20 em Buenos Aires - Ludovic Marin - 1. dez.2018/AFP

O cônsul francês em São Paulo não engoliu a comparação entre o presidente Macron a um general nazista.

“O Sr. elogia um general nazista comparando o com o presidente da república francesa. A fineza passou longe. #SemNoção.” , tuitou o cônsul.

A reação à bronca de Pont em Alexandre Garcia foi uma avalanche de agressões de bots e pessoas reais no twitter. O cônsul foi chamado de “burro”, “analfabeto funcional”, “frescão”, e por aí vai.

Um certo Leonardo N.R. tuitou:

“Realmente sem noção, querem derrubar ainda mais a imagem de Hitler comparando a Macron. Hitler, por mais putridos (sic) que fossem seus ideais, pelo menos era sincero. Queria matar judeus pelo “bem” da Alemanha. Já esse aí quer extirpar os últimos lastros de civilidade ocidental com islamismo”

“Por isso a França tá na merda que tá, com tanto esquerdista no governo, que nas próximas eleições se livre dessa praga”, tuitou Paulo Coutinho, vulgo @zzz7891246.

O usuário “O pombo” atacou as habilidades linguísticas do cônsul.

“Um analfabeto funcional clássico. O Consul deveria aprender melhor a língua portuguesa, pois no tweet do @alexandregarcia não existe elogio algum. Ele só comparou ambos e entendeu um como ‘menos pior’ que o outro.”

Pont fala um português impecável e sem sotaque. Morou três anos em São Paulo - fez o ensino médio aqui – e está como consul há dois anos.

Um certo C.Eduardo_Koreshkov foi ainda menos elegante. “Perfeito. Esse Consul FRESCÃO, além de tudo é burro.”

A turba cibernética não teve pruridos ao se referir à história de um país que perdeu milhares de cidadãos na guerra. Um chamou o governo francês atual de “2ª França de Vichy, com o Presidente Macron marionete”, outro afirmou que “muitos generais franceses, assim como milhares de cidadãos comuns, foram colaboradores dos nazistas quando Hitler invadiu Paris”.

O diplomata francês ficou perplexo com a virulência dos comentários.

“Existe uma uma regra de não-ingerência para os diplomatas, mas também existe uma regra de não tolerar ataques sem fundamento ao país. Aquilo foi uma ofensa a todos que lutaram contra o nazismo”, disse-me Pont. “Antes de se recusar a detonar Paris ele foi responsável pela morte de milhares de parisienses e cometeu crimes de guerra. Compararam o incomparável.”

Pont tem muitos anos de estrada. 

Já trabalhou na diretoria de comunicação do ministério das relações exteriores, na representação permanente da França junto à ONU, em Nova York, no gabinete do ministro da Economia e Finanças e também com o primeiro-ministro, Manuel Valls.

Mas essa deve ter sido a primeira vez que o diplomata teve de encarar um ataque de visigodos digitais brasileiros. 

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