Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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MC chega a 1 milhão de visualizações com poema para 'o pior presidente da história'

Vídeos de Lucas Afonso, poeta e músico da quebrada, viralizam nas redes sociais com crônicas do desgoverno brasileiro na pandemia

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“Brincadeira tem hora” é o título de um poema escrito pelo MC Lucas Afonso para se solidarizar com cada brasileiro que perdeu um ente querido nesta pandemia, em contagem fúnebre que já ultrapassou a barreira dos 250 mil mortos.

Publicado em 21 de janeiro em seu perfil no Instagram, o misto de poesia e manifesto viralizou.

“Eu vi no perfil da @naozzetti e trouxe pra cá esse amontoado de verdades que o @lucasafonsooficial fez”, escreveu a cantora Tereza Cristina, dois dias depois, ao compartilhar no Instagram o vídeo de 2 minutos e 42 segundos.

Brincadeira tem hora/ Piada boa é quando todo mundo ri/ Essa postura tua aí não tá daora/ Presidente de chacota/ E os meus pais na UTI.

Não tinha teste pra Covid na quebrada/ Cês sabem bem como é que as coisas são/ Na mesma hora bem lembrei da empregada/ Acabou contaminada pela patroa e o patrão.

O papo reto e ritmado do poeta de 28 anos nascido e criado no Jardim São Carlos, em São Miguel Paulista, na zona leste paulistana, é uma crônica do desgoverno brasileiro na condução de uma crise sanitária sem precedentes.

Com 50 mil seguidores no Instagram, a voz de Lucas ganhou potência nas redes sociais turbinada por nomes como o influencer Felipe Neto, o ator Lázaro Ramos, o cantor Chico César, e também por políticos, como Guilherme Boulos, do PSOL, e Ciro Gomes, do PDT.

“Foi uma explosão”, define o novo influencer da quebrada, sobre a marca de 1 milhão de visualizações alcançada a partir de inúmeras repostagens em perfis de famosos.

Uma resposta do tamanho da indignação diante do show de horrores de autoridades que não levam a sério o tamanho da tragédia humanitária, social e econômica da Covid-19 no país.

Brincadeira tem hora/ Piada boa é quando todo mundo ri/ Tem mãe, tem pai, tem filho que essa noite chora/ Pois não tiveram a chance de poder se despedir.

Enquanto o povo aguarda pela vacina/ O ministro diz não entender tanta ansiedade/ A negligência do governo assassina/ Quem pega o trem lotado nas beiradas das cidade.

Um general que não entende de medicina/ Milhões de testes prestes a perder a validade/ Presidente na entrevista faz gracinha/ E disse que matar é sua especialidade.

Joga no time do inimigo, incentiva aglomeração/ Fala pra tomar remédio que não tem comprovação.

Acabou oxigênio nos hospitais de Manaus/Falta luz por vários dias no estado do Amapá/ O mundo enfrenta pandemia, Brasil tá vivendo um caos/ E o ministro vem falar de dia D e hora H?

São 17 versos cantados/recitados numa toada ao mesmo tempo contundente e serena, que leva o ouvinte a se conectar com uma mensagem clara sobre a gravidade do momento.

“Brilhante”, escreveu o cantor Chico César. “Sensacional”, emendou a psicanalista Vera Iaconelli, colunista da Folha.

“Fico realizado de estar tocando corações e fazer o meu recado chegar a tantas pessoas diferentes. Minha intenção é furar as bolhas e conversar também com quem pensa diferente de mim”, diz Lucas.

O MC faz uma crítica contundente a Jair Bolsonaro e seu governo. Sem, no entanto, nominá-lo.

“Exponho o meu olhar, de forma humilde, sem chegar chamando de burro aqueles que votaram em outro candidato. Ninguém vai ouvir quem chega atacando e agredindo.”

Lucas espera assim dialogar com eleitores do “mito”. É um discurso sem ódio e bem longe do "politiquês" que, segundo ele, não fala às massas há muito tempo.

A hashtag #forabolsonaro aparece em alguns posts, deixando claro de que lado do espectro ideológico está o filho de uma ativista do movimento de saúde da ZL e de um torneiro mecânico, formado pelo Senai.

“Essa minha bagagem vem de berço. Meus pais são de luta, de greve e de bater ponto em mutirão. Aprendi com eles a pensar no coletivo. Um senso de comunidade que é base da minha formação como artista e na vida.”

Até o momento, o discurso de esquerda tem escapado do bombardeio do chamado “gabinete do ódio” e de defensores do bolsonarismo que atacam sem trégua opositores do governo.

“Como não uso o nome Bolsonaro, os robôs não me atacam. Nas minhas críticas, uso presidente, Governo Federal”, explica o também arte-educador, aluno do último semestre de musicoterapia, como bolsista numa faculdade particular.

Mas já houve golpes baixos por parte de bolsonaristas. “Esse cara é traficante de armas no Rio”, escreveu um deles.

O influencer ignora esse tipo de ataque pessoal e preconceituoso, com a carcaça curtida de quem sobreviveu nas bordas da metrópole.

Como escreveu em “À Margem”, canção título do seu primeiro CD, lançado quando ainda trabalhava de madrugada como conferente em uma garagem de uma empresa de ônibus.

A margem da história, à margem a glória/ Pobre dá luz ao enredo e não vai na dedicatória/ Mas cão que ladra não abala a trajetória/ A gente sabe porque sempre trava a porta giratória.

Lucas se orgulha de ter desmentido o vaticínio de uma professora do ensino fundamental, ao lhe chamar a atenção na sala de aula. “Você não quer saber de nada, anda mexendo com coisa errada, vai morrer cedo.”

Tinha 13 anos. “A gente se aproxima do que está perto. No raio de 1 km, havia dez pontos de vendas de drogas. Vi amigo sendo preso por assalto a mão armada, estelionato. Fui escapando e aprendendo com os erros dos próximos.”

A música e a literatura ampliaram horizontes e viraram ganha-pão.

No segundo semestre de 2018, ele lançou o livro de poesias “A Última Folha do Caderno”, em referência ao hábito de escrever ali os poemas. Já vendeu mil exemplares no boca a boca.

“A arte ocupa a cabeça e apresenta novos caminhos”, diz o jovem que um dia sonhou em ser jogador de futebol.

Até virar craque nas batalhas de poesias faladas. Em 2016, sagrou-se campeão do Slam Brasil, o que lhe garantiu passaporte para representar o país na Copa do Mundo de Poesia na França.

“Participei de várias edições locais desses campeonatos, o que me jogou no mundo”, diz. Lucas passou nove dias em Paris em sua primeira viagem internacional. Com tudo pago.

Experiência que o fez lembrar da caixa de sapato onde a mãe ia juntando dinheiro, nunca em quantidade suficiente, para um dia visitar a Cidade Luz. Sonho realizado pelo filho.

De volta ao Brasil, Lucas virou referência para outros meninos da quebrada. É para eles que escreveu poemas como “Baque na Moleira" falando de consecutivas goleadas de 7 a 1 na conta do trabalhador, do favelado.

A mão que bateu panela/ Não é a mão que lava panela / Foi para a Janela cantar o hino de camisa amarela/ Morre de medo de encontra favela na lista de aprovados no vestibular.

Imagina a tortura / Para quem apoiou ditadura/Encontrar a filha da empregada/ De beca na formatura.

Prestes a conquistar o diploma de curso superior, Lucas, que aos 15 anos fugiu da escola e ficou um ano sem estudar, hoje é tema de apostila de português do 9o ano do CEU São Carlos, na vizinhança onde cresceu.

"Agora a molecada de lá pode ler sobre uma vitória da quebrada”, diz ele. E manda um recado para a ex-professora: “Vai ver o que me faltava era identificação, sensação de pertencimento. Quem diria? Logo eu, que tirava nota baixa na prova”.

Uma trajetória que o credencia a ter esperança. Em “O Brasil Não Pode Parar”, ele descreve os dilemas dos motoboys que não puderam fazer quarentena na pandemia e se colocam em risco para fazer a economia girar.

Termina o poema apostando que "tudo isso vai passar/ Em breve será só na memória/ Tanto o vírus/ Quanto o pior presidente da história”.​

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