Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu Natal

O aniversariante e os outros

Influência de mitos pagãos sobre biografias de Jesus é menor do que se imagina, mostram estudos

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Todo Natal é a mesma patacoada. Sempre aparece algum sabichão de internet (aquela raça capaz de sobreviver a 50 pandemias, três apertadas no botão vermelho do arsenal do Putin e ao apocalipse zumbi) para repetir a mesmíssima ladainha sobre o aniversariante do dia.

"Você sabia que esse negócio de nascer no dia 25 de dezembro, de uma mãe virgem, numa caverna e cercado de pastores e reis magos não é exclusividade de Jesus?", diz nosso gênio da web, doutor pela UniSofá. "Tudo isso também aconteceu com Osíris, Mitra, Hórus, Dioniso e Adônis, entre outros deuses das mitologias antigas. O mito de Cristo é um mero plágio do de outras figuras divinas."

Vista do braço do Cristo Redentor; imagem foca rosto do monumento
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro - Tércio Teixeira - 7.out.2021/Folhapress

Uma bobagem repetida mil vezes inevitavelmente começa a parecer verdade para os incautos, e é disso que estamos falando aqui, gentil leitor. A relação entre as narrativas do Novo Testamento sobre a vida de Jesus e os fatos históricos é complicadíssima e difícil de elucidar, mas uma coisa a gente pode afirmar categoricamente: os paralelos com esses deuses não passam de forçada de barra.

Para começo de conversa, data de nascimento de deus pagão não era o tipo da coisa registrada em cartório na Antiguidade, e mesmo menções vagas à época do ano em que as divindades citadas acima teriam nascido não costumam aparecer nas fontes antigas. De qualquer modo, nenhum deles fazia aniversário em 25 de dezembro.

Em segundo lugar, nenhuma das narrativas sobre esses supostos "Cristos originais" diz que eles nasceram de uma virgem que engravidou por um mecanismo espiritual, como o citado pelos evangelhos de Mateus e Lucas. Em geral, tais figuras são o produto de relações sexuais entre um casal de deuses, ou entre um deus e uma jovem mortal.

(No caso de Hórus, o deus egípcio com cabeça de falcão, a coisa é um pouco mais exótica: o pai dele, Osíris, tinha sido assassinado e picado em pedacinhos por seu irmão, o maligno Set. A deusa Ísis, mulher de Osíris, precisou remontar e reanimar o corpo do marido antes de fazer sexo com ele e conceber Hórus.)

Você já deve ter imaginado como a conversa continuaria se a gente tivesse espaço, numa coluna breve como esta, para falar dos outros detalhes. Há até casos em que a comparação nem é possível. No de Mitra, um deus romano de inspiração persa, não há uma "biografia" detalhada, apenas iconografia e textos esparsos; no de Dioniso, é preciso perguntar qual deles, já que os textos clássicos falam de três deidades diferentes com esse nome.

Nenhum historiador sério duvida que Jesus tenha existido —o que não significa que as narrativas de seu nascimento não tenham ressonâncias míticas. No entanto, em geral, a inspiração vem da própria tradição judaica. A maldade do rei Herodes, a "matança dos inocentes" e a fuga de Maria, José e Jesus para o Egito, por exemplo, ajudam a retratar Cristo como um novo Moisés, figura que passa por apuros semelhantes no livro do Êxodo, no Antigo Testamento. As primeiras gerações cristãs estavam muito mais interessadas na Bíblia hebraica do que em Osíris e Dioniso.

Um rápido PS: para quem ainda acha sedutora a ideia de que Jesus é um personagem puramente mítico, e não histórico, recomendo a leitura de "Jesus existiu ou não?", do historiador americano Bart Ehrman. O livro é uma aula sobre como interpretar fontes antigas usando o método científico, e não achismo.

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