Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Dodôs, mamutes e outras ressurreições

Recriar o dodô e outras espécies extintas vai ser quase impossível; animais ainda vivos merecem mais atenção

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No começo desta semana, um colega (que há de permanecer anônimo) jogou no meu colo uma situação daquelas que a juventude de hoje costuma designar como "rolê aleatório": ser entrevistado ao vivo por um programa de TV indiano (?!) sobre as tentativas de ressuscitar os dodôs por métodos científicos (?!!!).

Imagino que jornalistas de ciência da própria Índia ou de países de língua inglesa estivessem em falta naquele dia. Seja como for, fiz o melhor que pude para tentar explicar à apresentadora por que achava aquilo 1) improvável de acontecer tão cedo e 2) uma ideia eticamente questionável. Com um pouquinho mais de calma, é o que farei de novo agora.

Esqueleto e modelo de dodô produzido em 1998 após pesquisas, no Museu de História Natural da Universidade de Oxford - FunkMonk Bazza Ramble /Wikimédia Commons

Os dodôs (Raphus cucullatus) viveram nas ilhas Maurício, no oceano Índico, até provavelmente o fim do século 17. Foi nessa época que a caça descontrolada por parte de marujos europeus e a introdução de espécies invasoras parece ter dado cabo da espécie. Ossos e outros tecidos preservados em museus são tudo o que sobrou do bicho imortalizado em "Alice no País das Maravilhas".

Apesar da aparência peculiar, os dodôs não passavam de membros supercrescidos (pesando cerca de 10 kg) do grupo dos columbídeos, ao qual pertencem as pombas. O plano de ressurreição anunciado recentemente pela empresa Colossal Biosciences envolveria justamente o uso do genoma de pombas modernas como o "chassi" (perdão pela metáfora automobilística) em cima do qual o material genético dos dodôs seria montado.

Parece fácil, não? Afinal de contas, já dispomos do genoma completo dos dodôs. Bastaria verificar os pontos nos quais existem diferenças entre o DNA deles e os das pombas atuais, alterar tudo para a "versão dodô" do genoma e arrumar uma boa chocadeira para os ovos ressuscitados.

Trata-se, porém, de um daqueles clássicos casos nos quais na prática a teoria é outra. As alterações necessárias para transformar de forma realmente completa o genoma de uma espécie no de outra, mesmo com parentesco próximo entre elas, fica na casa das centenas de milhares ou milhões de "letras" químicas de DNA.

Nenhum método de edição do genoma chegou perto de fazer algo minimamente parecido com isso até hoje. E há ainda o fato de que a taxa de acerto das alterações está longe de ser muito alta. Algumas "letras" sempre são trocadas de forma indesejada ou em lugares nos quais isso não era necessário.

Por isso, tanto no caso dos dodôs quanto no de qualquer outro animal candidato à ressurreição, como os mamutes, o máximo que a biotecnologia atual é capaz de oferecer seria a produção de animais que são essencialmente seus parentes modernos com algumas características da criatura extinta. Uma pomba "dodonizada", digamos, ou talvez um elefante-asiático peludo e com um cocuruto mais acentuado no alto da cabeça, assim como os mamutes.

Qualquer pessoa menos deslumbrada é capaz de perceber que isso não tem nada de ressurreição. No máximo, é um método de produção de curiosidades, sem nenhuma garantia de que os indivíduos gerados dessa maneira serão saudáveis ou levarão uma vida decente.

Os responsáveis por esse tipo de iniciativa andam falando em levantar verbas da ordem de centenas de milhões de dólares. É muito difícil não achar que essa dinheirama seria muito melhor empregada tentando salvar espécies que ainda não desapareceram. Ouvi dizer que existem alguns milhares delas por aí hoje em dia.

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